Aula teórica 6

Consequências do axioma do supremo (conclusão):
Propriedades dos racionais e irracionais.

Material de estudo:

Consequências do axioma do supremo (conclusão)

Na aula anterior, provámos que, como consequência do axioma do supremo, existe um real positivo, designado por \(\sqrt{2},\) que satisfaz a equação, \(x^2=2,\) e que não é racional. Ou seja, \(\sqrt{2}\in \mathbb{R}\setminus \mathbb{Q}.\) Em particular, isto significa que o conjunto dos irracionais, \(\mathbb{R}\setminus\mathbb{Q}\), é não vazio. Pelas propriedades seguintes, é imediato que, tal como o conjunto dos racionais \(\mathbb{Q}\), também o conjunto dos irracionais \(\mathbb{R}\setminus \mathbb{Q}\) é infinito:

Proposição: Sejam \(p,q\) dois números reais quaisquer.
  1. Se \(\;p\in\mathbb{Q}\;\) e \(\;q\in\mathbb{Q},\;\) então \(\;p+q\in\mathbb{Q}\;\) e \(\;pq\in\mathbb{Q}.\;\)
  2. Se \(\;p\in\mathbb{Q}\;\) e \(\;q\in\mathbb{R}\setminus\mathbb{Q},\;\) então \(\;p+q\in\mathbb{R}\setminus\mathbb{Q}\;\) e, se \(p\not=0,\) \(\;pq\in\mathbb{R}\setminus\mathbb{Q}.\;\)
  3. Se \(\;p\in\mathbb{R}\setminus\mathbb{Q}\;\) e \(\;q\in\mathbb{R}\setminus\mathbb{Q},\;\) então, \(\;p+q\;\) tal como \(\;pq,\;\) pode ser racional ou irracional.

Demonstração

  1. Seja \(\;p\in\mathbb{Q}\;\) e \(\;q\in\mathbb{Q},\;\) ou seja, \(\;p=m/n\;\) e \(\;q=r/s\;\) para alguns inteiros \(\;m,n,r,s.\;\) Então, \[p+q=\frac{m}{n}+\frac{r}{s}=\frac{ms+nr}{ns}\qquad\text{e}\qquad pq=\frac{m}{n}\cdot\frac{r}{s}=\frac{mr}{ns}.\] Como a soma e produto de inteiros são inteiros, concluímos que, tanto \(\;p+q\;\) como \(\;pq\;\) são dados por quocientes de inteiros. Logo, \(\;p+q\;\) e \(\;pq\;\) são racionais.

  2. Sejam \(\;p\in\mathbb{Q}\;\) e \(\;q\in\mathbb{R}\setminus\mathbb{Q}.\;\) Raciocinemos por absurdo: se \(\;r=p+q\;\) fosse racional, então, \(\;q=r+(-p)\;\) seria a soma de dois racionais e portanto, como vimos em 1., seria racional. Mas, nesse caso, estaríamos a contradizer as condições assumidas. Logo, \(\;r\;\) tem que ser irracional. Para \(\;pq\;\) o argumento é semelhante (faça como exercício).
  3. Sejam \(\;p\in\mathbb{R}\setminus\mathbb{Q}\;\) e \(\;q\in\mathbb{R}\setminus\mathbb{Q}.\;\) Mostremos, com exemplos, que todas as possibilidades podem ocorrer:

Destas propriedades, podemos concluir que, para cada racional \(\;p\;\) existe, pelo menos, um irracional que pode ser dado por \(\;p+\sqrt{2}.\;\) Ou seja, existem tantos ou mais irracionais que racionais. Na realidade, prova-se que existem mais irracionais que racionais. Para o fazer, teríamos que considerar aspectos da teoria dos conjuntos relacionados com o conceito de cardinal de um conjunto, que corresponde à noção de "contagem de elementos" tanto de conjuntos finitos como de conjuntos infinitos. Não o faremos nesta disciplina.

Surge a questão natural de como é que os racionais e irracionais se "distribuem" ao longo da recta real. Para responder a essa questão precisamos de mais uma consequência fundamental do axioma do supremo que enunciaremos de seguida. Aliás ela é tão intuitiva que o que é surpreendente é que ela não saia directamente da definição dos números naturais e precisemos do axioma do supremo para a obter:

Teorema: O conjunto dos naturais \(\;\mathbb{N}\;\) não é majorado.

Demonstração

Suponhamos, por absurdo, que \(\mathbb{N}\) era majorado. Então, pelo axioma do supremo, existiria \[ s=\sup\mathbb{N}. \] Como \(s\) é o menor dos majorantes (relembre a definição de supremo), então \(\;s-1\;\) não seria majorante de \(\mathbb{N}.\;\) Isso quereria dizer que havia \(\;p\in\mathbb{N}\;\) tal que \(p\gt s-1.\;\) Como \(\mathbb{N}\) é um conjunto indutivo, sabemos então que \(p+1\in\mathbb{N}.\;\) Mas, por outro lado, \[ p\gt s-1\quad \Rightarrow\quad p+1\gt s. \] Ou seja, estamos a dizer que o natural \(p+1\) seria maior que \(\sup\mathbb{N},\) o que evidentemente contradiz a definição de supremo. Como esta contradicção é consequência de termos assumido a hipótese de que \(\mathbb{N}\) era majorado, concluímos que esta hipótese é falsa.

Escolhamos agora arbitrariamente um real \(\;\varepsilon>0.\;\) Como \(\mathbb{N}\) não é majorado, sabemos que existem naturais \(n,m\) tais que, \(\;n\gt 1/\varepsilon\;\) e \(\;m\gt \sqrt{2}/\varepsilon.\;\) Mas, nesse caso, \[0\lt\frac{1}{n}\lt \varepsilon \qquad\text{e}\qquad 0\lt\frac{\sqrt{2}}{m}\lt\varepsilon.\] Provámos assim,

Proposição: Qualquer que seja \(\;\varepsilon\gt 0\;\) (por mais pequeno que ele seja), tem-se sempre, \[\mathbb{Q}\cap \left]0,\varepsilon\right[\not=\emptyset\quad \text{e}\qquad (\mathbb{R}\setminus\mathbb{Q})\cap \left]0,\varepsilon\right[\not=\emptyset\]

Ou seja, há racionais e irracionais tão próximos de zero quanto se queira.

Tomemos agora dois reais positivos arbitrários \(\;a\;\) e \(\;b.\;\) Fazendo \(\;\varepsilon=b/a,\;\) pelo argumento anterior, sabemos que existe \(\;n\in \mathbb{N}\;\) tal que \(\;1/n\lt b/a.\;\) Isto tem como consequência evidente o seguinte importante resultado:
Teorema (propriedade arquimedeana): Dados dois positivos arbitrários \(\;a\;\) e \(\;b\;\) existe sempre \(\;n\in\mathbb{N}\;\) tal que \[na\gt b.\]

Esta propriedade assegura a possibilidade de medir qualquer comprimento \(\;b,\;\) por maior que ele seja, por uma régua graduada em unidades de comprimento \(\;a,\;\) por menor que seja esta unidade de comprimento.

Combinando os dois resultados anteriores podemos obter por fim o resultado que procurávamos e que nos esclarece de que forma os racionais e os irracionais se distribuem ao longo da recta real:
Teorema (densidade dos racionais e dos irracionais na recta real): Dados dois reais arbitrários \(\;a,b\;\) tais que \(\;a\lt b\;\), tem-se sempre \[ \mathbb{Q}\cap \left]a,b\right[\not=\emptyset\qquad\text{e}\qquad (\mathbb{R}\setminus\mathbb{Q})\cap \left]a,b\right[\not=\emptyset. \]
Ou seja, em qualquer intervalo aberto não vazio, por mais pequeno que ele seja, existem sempre racionais e irracionais. É claro que isto implica que, em cada intervalo aberto não vazio existam, na realidade, infinitos racionais e infinitos irracionais.

Demonstração

Vamos demonstrar só para o caso \(\;0\lt a\lt b.\;\) É fácil ver que os outros casos se podem obter a partir deste.

A ideia da demonstração é simples e geométrica: começamos por considerar a "translação" do intervalo \(\;\left]a,b\right[\;\) para a origem: sendo \(\;\varepsilon=b-a\;\) o comprimento do intervalo, consideremos então o intervalo \(\;\left]0,\varepsilon\right[.\;\) Pela proposição enunciada atrás, sabemos que existem \[p\in\mathbb{Q}\cap \left]0,\varepsilon\right[\qquad\text{e}\qquad q\in (\mathbb{R}\setminus\mathbb{Q})\cap \left]0,\varepsilon\right[.\] Em seguida, provamos que multiplicando estes números por naturais adequados conseguimos "transportá-los" para o intervalo \(\;\left]a,b\right[.\;\) Para isso, sabemos pela propriedade arquimedeana que existem naturais \(\;n,m\;\) tais que \[np\gt a \qquad\text{e}\qquad mq\gt a. \] Como qualquer subconjunto não vazio de naturais tem mínimo, podemos considerar que \(\;n,m\;\) são os menores naturais que satisfazem aquelas desigualdades, ou seja, \[(n-1)p\leqslant a\qquad\text{e}\qquad (m-1)q\leqslant a.\] Mas então, \[ np=(n-1)p+p\leqslant a+p\lt a+\varepsilon=a+(b-a)=b. \] Ou seja, \[np\in \left]a,b\right[,\] o que nos permite concluir que \(\;\mathbb{Q}\cap \left]a,b\right[\not=\emptyset.\;\) De igual modo, obtemos \(\;mq\in \left]a,b\right[\;\) (faça como exercício). Concluímos então também que \(\;(\mathbb{R}\setminus\mathbb{Q})\cap \left]a,b\right[\not=\emptyset.\;\)

Consequências da densidade de \(\;\mathbb{Q}\;\) e de \(\;\mathbb{R}\setminus\mathbb{Q}\;\) em \(\;\mathbb{R}.\;\) Exemplos.

Identificar \(\inf,\sup,\min,\max\) dos conjuntos dados abaixo.
Usar, para além dos resultados vistos atrás, as definições e as relações vistas noutra aula entre \(\inf\) e \(\min,\) por um lado, e \(\sup\) e \(\max,\) por outro. Por exemplo, relembre que \[p=\max A\quad\Leftrightarrow\quad \left(\,p\in A \quad\wedge\quad p\text{ é majorante de }A\,\right)\] \[p=\max A \quad\Rightarrow \quad p=\sup A\] \[\left(\,p=\sup A \quad\wedge\quad p\in A\,\right)\quad \Leftrightarrow\quad p=\max A.\]

  1. \(A=\left[0,1\right[\cap\mathbb{Q}.\;\) Como \(0\) é minorante de \(A\), e \(0\in A\), por definição, temos \(\;\min A=0\;\) e, portanto, \(\;\inf A=0.\;\)
    Obviamente \(\;1\;\) é majorante de \(\;A\;\) e é o menor deles. De facto, se \(0\lt p\lt 1\), então existe um racional em \(\left]p,1\right[\), o qual é, portanto, um elemento de \(A\) maior que \(p,\) e logo, \(p\) não seria majorante de \(A.\) Logo, \(\;\sup A=1.\;\) Como \(\;1\notin A\;\) concluímos que \(\;A\;\) não tem máximo.

  2. \(B=\left[0,1\right[\setminus\mathbb{Q}\;\) (obviamente equivalente a \(B=\left[0,1\right[\cap(\mathbb{R}\setminus\mathbb{Q})\)). \(0\) é obviamente um minorante de \(B\) e é o maior deles. De facto, se considerarmos \(0\lt p\lt 1\), existe um irracional em \(\left]0,p\right[\), o qual será portanto um elemento de \(B\) menor que \(p,\) e logo, \(p\) não seria um minorante de \(B.\) Logo, por definição, \(\;\inf B=0.\;\) Como \(\;0\notin B\;\) (por não ser irracional), concluímos que \(B\) não tem mínimo.
    Como \(1\) é obviamente um majorante de \(B\) e é o menor deles (justifique!) concluímos que \(\;\sup B=1.\;\) Como \(\;1\notin B,\;\) o conjunto \(B\) não tem máximo.

  3. \(C=\left[0,1\right]\cup\{\sqrt{2}\}\cup\{-1\}.\;\) Como, \(-1\) e \(\sqrt{2}\) são, respectivamente, um minorante e um majorante de \(C,\) e, além disso, são também elementos de \(C\), concluímos que \(\;\min C=-1\;\) e \(\;\max C =\sqrt{2}.\;\) Logo, como consequência, \(\;\inf C=-1\;\) e \(\;\sup C=\sqrt{2}.\;\)

  4. \(D=C\cap\mathbb{Q}.\;\) Justifique, em primeiro lugar, que \(\;\max D=1\;\), e que, portanto, \(\;\sup D=1.\;\) Justifique, de igual modo, que \(\;\min D=-1\;\) e que, portanto, \(\;\inf D=-1.\)

  5. \(E=C\setminus \mathbb{Q}.\;\) Justifique, em primeiro lugar que, \(\;\max E=\sqrt{2},\;\) e, portanto, \(\;\sup E=\sqrt{2}.\;\) Justifique que \(\;\inf E=0,\;\) e que \(\;E\;\) não tem mínimo.

  6. \(F=\left\{\dfrac{1}{n}\;:\;n\in\mathbb{N}\right\}.\;\) Este problema é diferente dos anteriores uma vez que o conjunto dado não envolve intervalos (!). Obviamente que \(\;\sup F=\max F=1.\;\)
    Para vermos o ínfimo, notemos que qualquer que seja \(\;n\in\mathbb{N},\;\) \(\frac{1}{n}\gt 0,\) e portanto, \(0\) é um minorante de \(F.\;\) Por outro lado, já vimos que, para qualquer \(p\gt 0,\) existe \(n\in\mathbb{N}\) tal que \(\frac{1}{n}\lt p.\;\) Logo, \(0\) é o maior dos minorantes de \(F\) e, portanto, \(\inf F=0.\;\) Como, \(\;0\notin F,\;\) concluímos que \(F\) não tem mínimo.