Os números racionais.
A não existência de solução racional da equação \(x^2-2=0\).
Os axiomas de corpo e de ordem não chegam para caracterizar \(\mathbb{R}\)
Minorantes, majorantes, mínimo, máximo, ínfimo e supremo de um conjunto.
O axioma do supremo.
Material de estudo:
Na aula anterior introduzimos um subconjunto especial de \(\mathbb{R}\): o conjunto dos números naturais, \(\mathbb{N}\). O conjunto dos inteiros será então \[\mathbb{Z}=\mathbb{N}\cup(-\mathbb{N})\cup\{0\},\qquad\text{onde}\quad -\mathbb{N}=\{n : -n\in\mathbb{N}\},\] isto é, um número é inteiro se é natural ou se é o simétrico de um natural ou se é zero. O conjunto dos números racionais define-se como sendo \[\mathbb{Q}=\{\frac{p}{q}: p,q\in\mathbb{Z},\; q\not=0\},\] ou seja, um número é racional se puder ser escrito como o quociente entre dois inteiros. É evidente que, \[\mathbb{N}\subset\mathbb{Z}\subset\mathbb{Q}\subset\mathbb{R}.\] Constata-se que (verifique!):
Do exposto, deduz-se que os conjuntos dos naturais e dos inteiros estão estritamente contidos em \(\mathbb{R}\) (estão contidos e não coicidem com \(\mathbb{R}\)). Mas, o mesmo não se conclui de \(\mathbb{Q}\): apenas com base nestes axiomas, \(\mathbb{Q}\) poderia muito bem coincidir com \(\mathbb{R}\). Nesse caso, não existiriam numeros irracionais. Vejamos em seguida que existe, pelo menos, uma propriedade que queremos que \(\mathbb{R}\) satisfaça e que não é satisfeita por \(\mathbb{Q}\): a existência de \(\sqrt{2}\). Isso indica que os axiomas dados até agora não chegam para caracterizar o conjunto dos números reais. Há a necessidade então de se introduzir mais axiomas, para que as propriedades dos reais sejam completamente estabelecidas. Na realidade, basta um axioma extra: o axioma do supremo.
Proposição 1: Não existe \(x\in\mathbb{Q}\) tal que \(x^2=2\).
Demonstração:
Vamos usar um método de demonstração, designado por "redução ao absurdo", o qual consiste em mostrar que, se negarmos a proposição que queremos demonstrar somos conduzidos a uma contradição (impossibilidade).
Assim, a proposição tem que ser verdadeira.
Suponhamos então que existe \(\; x=\frac{p}{q},\; p,q\in\mathbb{Z},\;\) sem divisores comuns (isto é, \(\frac{p}{q}\) é uma fracção irredutível), e que \(\; x^2=2.\quad\) Designamos esta afirmação como hipótese de absurdo.
(Note que é sempre possível reduzir uma fração a uma irredutível: basta dividir numerador e denominador por todos os divisores comuns).
Então,
\[x^2=2\;\Leftrightarrow\; \frac{p^2}{q^2}=2\;\Leftrightarrow\; p^2=2q^2\;\Rightarrow\; p^2 \text{ é par}.\]
Mas, se \(p^2\) é par, então necessariamente \(p\) é par (veja o exercício 1. da lista dos exercícios resolvidos - link
" O Axioma do Supremo").
Ou seja, se \(\mathbb{Q}\) satisfaz os axiomas de corpo e de ordem dados até agora, e não existe solução de \(x^2=2\) em \(mathbb{Q}\), concluimos que não é possíve garantir a existência de \(\sqrt{2}\) apenas com base nesses axiomas.
Em seguida, introduzimos um último axioma, designado por Axioma do Supremo, o qual, juntamente com os outros já introduzidos, caracterizam todas as propriedades dos números reais incluindo a existência de raiz quadrada de qualquer real positivo.
Antes, porém, é preciso introduzir alguns conceitos.
Definição: Seja \(A\subset \mathbb{R}\). Um real \(p\) diz-seSimbolicamente,O conjunto \(A\) diz-se
- um majorante de \(A\) se, qualquer que seja \(x\in A\), \(\;p\geqslant x,\)
- um minorante de \(A\) se, qualquer que seja \(x\in A\), \(\;p\leqslant x.\)
- majorado se existem majorantes de \(A,\)
- minorado se existem minorantes de \(A,\)
- limitado se existem minorantes e majorantes de \(A,\) ou seja, \(A\) é minorado e majorado.
\(A=\{0,1\}\):
Conjunto dos minorantes de \(A\): \(\quad U=]-\infty,0]\qquad \)
Conjunto dos majorantes de \(A\): \(\quad V=[1,+\infty[.\)
Logo, \(A\) é um conjunto limitado.
\(B=[0,1[\):
Conjunto dos minorantes de \(B\): \(\quad U=]-\infty,0]\qquad \)
Conjunto dos majorantes de \(B\): \(\quad V=[1,+\infty[.\)
Logo, \(B\) é um conjunto limitado.
\(C=]-\infty,5]\):
Conjunto dos minorantes de \(C\): \(\quad U=\emptyset\;\text{ (conjunto vazio)}\qquad\)
Conjunto dos majorantes de \(C\): \(\quad V=[5,+\infty[.\)
Logo, \(C\) é um conjunto majorado mas não minorado. Portanto, não é limitado.
Reparem que o conjunto dos minorantes de um conjunto \(A\) ou é o conjunto vazio ou é um intervalo. Em particular, se \(A\) tiver um minorante \(p\), então \(A\) tem infinitos minorantes: qualquer \(a\leqslant p\) é um minorante. Analogamente para os majorantes: se \(q\) é um majorante de \(A\), então qualquer \(b\geqslant q\) é um majorante de \(A\).
Definição: Seja \(A\subset \mathbb{R}\), \(\;V\) o conjunto dos seus majorantes e \(\;U\) o conjunto dos seus minorantes. Diz-se que,
- \(\;M\) é máximo de \(A\) se \(M\in A\cap V\), ou seja, se \(\;M\;\) é simultaneamente um elemento de \(A\) e um seu majorante;
- \(\;m\) é mínimo de \(A\) se \(m\in A\cap U\), ou seja, se \(\;m\;\) é simultaneamente um elemento de \(A\) e um seu minorante.
Não é difícil provar que um conjunto \(A\), se tiver máximo \(M\), este é único. Podemos então dizer que \(M\) é o maior elemento de \(A\). Analogameente para o mínimo de \(A\). Então, em caso de existência, \(m\) é o menor elemento de \(A\). Então, escreve-se respectivamente, \[M=\max A\quad \text{e}\quad m=\min A.\]
Exemplos
Definição: Seja \(A\subset \mathbb{R}\), \(\;V\) o conjunto dos seus majorantes e \(\;U\) o conjunto dos seus minorantes. Definem-se o supremo e o ínfimo de \(A\):
- \(\;\sup A=\min V\;\) se este mínimo existir, ou seja, o supremo de \(A\) é o menor dos majorantes de \(A\).
- \(\;\inf A=\max V\;\) se este máximo existir, ou seja, o ínfimo de \(A\) é o maior dos minorantes de \(A\).
Portanto, para estudarmos o supremo e o ínfimo de um conjunto, temos que olhar para o conjunto, respectivamente, dos majorantes e dos minorantes desse conjunto.
ExemplosObservação importante: o ínfimo e o supremo de um conjunto não têm que pertencer a esse conjunto.
Naturalmente, existe uma relação entre o ínfimo e o mínimo por um lado, e o supremo e o máximo, por outro:Proposição 2: Seja \(A\subset \mathbb{R}\). Então,Por outro lado, vimos atrás nos exemplos que \(\sup B=1\) enquanto \(\max B\) não existe. Ou seja, a existência de supremo não implica a existência de máximo. Analogamente para o ínfimo e mínimo. Por isso, na Proposição 2, tratam-se de implicações e não de equivalências. No entanto, temos:
- \(\;M=\max A\;\Rightarrow\; M=\sup A,\)
- \(\;m=\min A\;\Rightarrow\; m=\inf A.\)
Proposição 3: Seja \(A\subset \mathbb{R}\). Então,
- \(\;M=\sup A\wedge M \in A\quad\Rightarrow\quad M=\max A,\)
- \(\;m=\,\inf A\,\wedge \,m\in A\quad\Rightarrow\quad \,m=\min A.\)
De facto, seja \(M=\sup A\). Então, por definição de supremo, \(M\) é um majorante de \(A\). Portanto, se além disso impusermos que \(M\in A\) então, \(M\in A\cap V\), onde \(V\) é o conjunto dos majorantes de \(A\). Logo, \(M=\max A,\;\) por definição. Analogamente para o \(\inf A\) e \(\min A.\)
As relações expressas mas proposições 2 e 3 são muitas vezes úteis para rapidamente tirar conclusões sobre o supremo ou o ínfimo a partir do conhecimento do máximo ou do mínimo, respectivamente, ou vice-versa. Por exemplo, se soubermos que, para dado conjunto \(D\), \(\;\sup D=1,\;\) para tirarmos conclusões sobre o máximo, basta ver se \(\;1\in D.\;\) Em caso positivo, \(\;\max D=1,\;\) e em caso negativo, \(\;\max D\;\) não existe.Axioma do supremo: Qualquer conjunto \(A\subset \mathbb{R}\) não vazio e majorado tem supremo em \(\mathbb{R}.\)
A propriedade análoga para o ínfimo será:
Qualquer conjunto \(A\subset \mathbb{R}\) não vazio e minorado tem ínfimo em \(\mathbb{R}.\)
Não é necessário impôr esta propriedade como um axioma, uma vez que ele é equivalente ao axioma do supremo. Para ver esse facto, começe por notar que
\(\inf A=-\sup(-A)\). Por exemplo, \(-1=\inf\left]-1,2\right]=-\sup\left[-2,1\right[.\)
Observação importante: deste axioma se deduz que, se \(A\) não é vazio, só há duas possibilidades: ou \(A\) não é majorado, e, nesse caso, não existe \(\sup A\), ou \(A\) é majorado e, nesse caso, existe \(c=\sup A\), sendo que o conjunto dos majorantes será \(V=[c,+\infty[,\) fechado à esquerda. Resultado análogo para o ínfimo e minorantes.
Na próxima aula veremos como este axioma tem, como uma das suas consequência, a existência de solução em \(\mathbb{R}\) da equação \(x^2=2\) e, portanto, a existência de números irracionais. Referiremos também uma propriedade fundamental dos números racionais e irracionais sobre a forma como eles se distribuem ao longo da recta real.