Aula teórica 4

Os números racionais.
A não existência de solução racional da equação \(x^2-2=0\).
Os axiomas de corpo e de ordem não chegam para caracterizar \(\mathbb{R}\)
Minorantes, majorantes, mínimo, máximo, ínfimo e supremo de um conjunto.
O axioma do supremo.

Material de estudo:

Os números racionais.

Na aula anterior introduzimos um subconjunto especial de \(\mathbb{R}\): o conjunto dos números naturais, \(\mathbb{N}\). O conjunto dos inteiros será então \[\mathbb{Z}=\mathbb{N}\cup(-\mathbb{N})\cup\{0\},\qquad\text{onde}\quad -\mathbb{N}=\{n : -n\in\mathbb{N}\},\] isto é, um número é inteiro se é natural ou se é o simétrico de um natural ou se é zero. O conjunto dos números racionais define-se como sendo \[\mathbb{Q}=\{\frac{p}{q}: p,q\in\mathbb{Z},\; q\not=0\},\] ou seja, um número é racional se puder ser escrito como o quociente entre dois inteiros. É evidente que, \[\mathbb{N}\subset\mathbb{Z}\subset\mathbb{Q}\subset\mathbb{R}.\] Constata-se que (verifique!):

Do exposto, deduz-se que os conjuntos dos naturais e dos inteiros estão estritamente contidos em \(\mathbb{R}\) (estão contidos e não coicidem com \(\mathbb{R}\)). Mas, o mesmo não se conclui de \(\mathbb{Q}\): apenas com base nestes axiomas, \(\mathbb{Q}\) poderia muito bem coincidir com \(\mathbb{R}\). Nesse caso, não existiriam numeros irracionais. Vejamos em seguida que existe, pelo menos, uma propriedade que queremos que \(\mathbb{R}\) satisfaça e que não é satisfeita por \(\mathbb{Q}\): a existência de \(\sqrt{2}\). Isso indica que os axiomas dados até agora não chegam para caracterizar o conjunto dos números reais. Há a necessidade então de se introduzir mais axiomas, para que as propriedades dos reais sejam completamente estabelecidas. Na realidade, basta um axioma extra: o axioma do supremo.

Proposição 1: Não existe \(x\in\mathbb{Q}\) tal que \(x^2=2\).

Demonstração:
Vamos usar um método de demonstração, designado por "redução ao absurdo", o qual consiste em mostrar que, se negarmos a proposição que queremos demonstrar somos conduzidos a uma contradição (impossibilidade). Assim, a proposição tem que ser verdadeira.

Suponhamos então que existe \(\; x=\frac{p}{q},\; p,q\in\mathbb{Z},\;\) sem divisores comuns (isto é, \(\frac{p}{q}\) é uma fracção irredutível), e que \(\; x^2=2.\quad\) Designamos esta afirmação como hipótese de absurdo.
(Note que é sempre possível reduzir uma fração a uma irredutível: basta dividir numerador e denominador por todos os divisores comuns).
Então, \[x^2=2\;\Leftrightarrow\; \frac{p^2}{q^2}=2\;\Leftrightarrow\; p^2=2q^2\;\Rightarrow\; p^2 \text{ é par}.\] Mas, se \(p^2\) é par, então necessariamente \(p\) é par (veja o exercício 1. da lista dos exercícios resolvidos - link " O Axioma do Supremo").

Escrevemos então \(\;p=2k,\;\) para algum inteiro \(\;k\;\). Mas então, \[x^2=2\;\Leftrightarrow\; \frac{4k^2}{q^2}=2\;\Leftrightarrow\; q^2=2k^2\;\Rightarrow\; q^2 \text{ é par}.\] Então, \(q\) é par. Portanto, \(p\) e \(q\) têm o divisor comum \(2\), o que contradiz a hipótese de absurdo.
Conclusão: a hipótese de absurdo é falsa e, portanto, a proposição é verdadeira.
De facto, esta demonstração pode ser facilmente adaptada para demonstrar que, se \(x^2=m\) com \(m\) primo, então \(x\) não pode ser racional (faça-o, usando o facto de que, se \(p^2\) é múltiplo de \(m\) então \(p\) é múltiplo de \(m\)). Mais geralmente, é possível provar-se que, se a raiz quadrada de um inteiro não é ela própria um inteiro, então não pode ser racional.

Ou seja, se \(\mathbb{Q}\) satisfaz os axiomas de corpo e de ordem dados até agora, e não existe solução de \(x^2=2\) em \(mathbb{Q}\), concluimos que não é possíve garantir a existência de \(\sqrt{2}\) apenas com base nesses axiomas.

Em seguida, introduzimos um último axioma, designado por Axioma do Supremo, o qual, juntamente com os outros já introduzidos, caracterizam todas as propriedades dos números reais incluindo a existência de raiz quadrada de qualquer real positivo.

Antes, porém, é preciso introduzir alguns conceitos.

Minorantes, majorantes, ínfimo, supremo, mínimo e máximo de um conjunto

Definição: Seja \(A\subset \mathbb{R}\). Um real \(p\) diz-se O conjunto \(A\) diz-se
Simbolicamente, Exemplos

\(A=\{0,1\}\):
Conjunto dos minorantes de \(A\): \(\quad U=]-\infty,0]\qquad \) Conjunto dos majorantes de \(A\): \(\quad V=[1,+\infty[.\)
Logo, \(A\) é um conjunto limitado.

\(B=[0,1[\):
Conjunto dos minorantes de \(B\): \(\quad U=]-\infty,0]\qquad \) Conjunto dos majorantes de \(B\): \(\quad V=[1,+\infty[.\)
Logo, \(B\) é um conjunto limitado.

\(C=]-\infty,5]\):
Conjunto dos minorantes de \(C\): \(\quad U=\emptyset\;\text{ (conjunto vazio)}\qquad\) Conjunto dos majorantes de \(C\): \(\quad V=[5,+\infty[.\)
Logo, \(C\) é um conjunto majorado mas não minorado. Portanto, não é limitado.

Reparem que o conjunto dos minorantes de um conjunto \(A\) ou é o conjunto vazio ou é um intervalo. Em particular, se \(A\) tiver um minorante \(p\), então \(A\) tem infinitos minorantes: qualquer \(a\leqslant p\) é um minorante. Analogamente para os majorantes: se \(q\) é um majorante de \(A\), então qualquer \(b\geqslant q\) é um majorante de \(A\).

Definição: Seja \(A\subset \mathbb{R}\), \(\;V\) o conjunto dos seus majorantes e \(\;U\) o conjunto dos seus minorantes. Diz-se que,

Não é difícil provar que um conjunto \(A\), se tiver máximo \(M\), este é único. Podemos então dizer que \(M\) é o maior elemento de \(A\). Analogameente para o mínimo de \(A\). Então, em caso de existência, \(m\) é o menor elemento de \(A\). Então, escreve-se respectivamente, \[M=\max A\quad \text{e}\quad m=\min A.\]

Exemplos
Relativamente aos exemplos anteriores:
\(\min A=0,\qquad \max A=1,\)
\(\min B=0,\qquad \max B\) não existe, (\(A\cap V=\emptyset\))
\(\min C\) não existe (\(V=\emptyset\)), \(\qquad\max C=5\).

Definição: Seja \(A\subset \mathbb{R}\), \(\;V\) o conjunto dos seus majorantes e \(\;U\) o conjunto dos seus minorantes. Definem-se o supremo e o ínfimo de \(A\):

Portanto, para estudarmos o supremo e o ínfimo de um conjunto, temos que olhar para o conjunto, respectivamente, dos majorantes e dos minorantes desse conjunto.

Exemplos
Relativamente aos exemplos anteriores, usando esta definição de supremo e ínfimo, podemos escrever:
\(\inf A=0,\qquad \sup A=1,\)
\(\inf B=0,\qquad \sup B=1\)
\(\inf C\) não existe (\(V=\emptyset\), logo não existe \(\min V\)), \(\qquad\sup C=5\).

Observação importante: o ínfimo e o supremo de um conjunto não têm que pertencer a esse conjunto.

Naturalmente, existe uma relação entre o ínfimo e o mínimo por um lado, e o supremo e o máximo, por outro:
Seja \(M=\max A.\;\) Então, por definição, \(M\) é um majorante de \(A\). Mas se \(p\lt M\), então \(p\) já não é um majorante de \(A\) porque, por definição de máximo, \(M\in A\). Logo, \(M\) é o menor dos majorantes de \(A\), ou seja, \(M=\sup A.\;\) Analogamente para \(\min A\) e \(\inf A\). Temos então:
Proposição 2: Seja \(A\subset \mathbb{R}\). Então,
Por outro lado, vimos atrás nos exemplos que \(\sup B=1\) enquanto \(\max B\) não existe. Ou seja, a existência de supremo não implica a existência de máximo. Analogamente para o ínfimo e mínimo. Por isso, na Proposição 2, tratam-se de implicações e não de equivalências. No entanto, temos:
Proposição 3: Seja \(A\subset \mathbb{R}\). Então,

De facto, seja \(M=\sup A\). Então, por definição de supremo, \(M\) é um majorante de \(A\). Portanto, se além disso impusermos que \(M\in A\) então, \(M\in A\cap V\), onde \(V\) é o conjunto dos majorantes de \(A\). Logo, \(M=\max A,\;\) por definição. Analogamente para o \(\inf A\) e \(\min A.\)

As relações expressas mas proposições 2 e 3 são muitas vezes úteis para rapidamente tirar conclusões sobre o supremo ou o ínfimo a partir do conhecimento do máximo ou do mínimo, respectivamente, ou vice-versa. Por exemplo, se soubermos que, para dado conjunto \(D\), \(\;\sup D=1,\;\) para tirarmos conclusões sobre o máximo, basta ver se \(\;1\in D.\;\) Em caso positivo, \(\;\max D=1,\;\) e em caso negativo, \(\;\max D\;\) não existe.

O Axioma do Supremo

Podemos finalmente enunciar o último dos axiomas dos números reais, o axioma do supremo. Este também é, por vezes, designado por axioma da completude, uma vez que, em consequência dele, o conjunto dos números reais irá ficar completo com os números irracionais de forma a que, de uma forma intuitiva informal, o conjunto dos números reais fique representado por um contínuo, ou seja, uma recta "sem buracos".
Axioma do supremo: Qualquer conjunto \(A\subset \mathbb{R}\) não vazio e majorado tem supremo em \(\mathbb{R}.\)

A propriedade análoga para o ínfimo será:
Qualquer conjunto \(A\subset \mathbb{R}\) não vazio e minorado tem ínfimo em \(\mathbb{R}.\)
Não é necessário impôr esta propriedade como um axioma, uma vez que ele é equivalente ao axioma do supremo. Para ver esse facto, começe por notar que \(\inf A=-\sup(-A)\). Por exemplo, \(-1=\inf\left]-1,2\right]=-\sup\left[-2,1\right[.\)

Observação importante: deste axioma se deduz que, se \(A\) não é vazio, só há duas possibilidades: ou \(A\) não é majorado, e, nesse caso, não existe \(\sup A\), ou \(A\) é majorado e, nesse caso, existe \(c=\sup A\), sendo que o conjunto dos majorantes será \(V=[c,+\infty[,\) fechado à esquerda. Resultado análogo para o ínfimo e minorantes.

Na próxima aula veremos como este axioma tem, como uma das suas consequência, a existência de solução em \(\mathbb{R}\) da equação \(x^2=2\) e, portanto, a existência de números irracionais. Referiremos também uma propriedade fundamental dos números racionais e irracionais sobre a forma como eles se distribuem ao longo da recta real.