Funções contínuas em intervalos. Propriedades globais da continuidade
Estudamos agora propriedades que são consequências da continuidade de uma função em todo um intervalo e, portanto, não basta a continuidade em torno de um ponto.
Os grandes teoremas desta secção são:
O Teorema de Bolzano (ou do valor intermédio)
O Teorema de Weierstrass
O Teorema da continuidade da função inversa
Estes resultados estão expostos no texto [AB], páginas 60-66, e qualquer um deles é muito importante.
Para verem exercícos onde eles se aplicam, recomendo os exercícios resolvidos da lista [CG]. Numa ficha das aulas práticas há problemas semelhantes.
Começemos por referir que usamos a expressão "a função \(f\) é contínua num conjunto \(A\subset D_f\)" para dizer que \(f\) é contínua em todos os pontos
\(a\in A.\)
Exemplo 1 A função de Heaviside \[\; H(x)=\begin{cases}0, & x\lt 0\\ 1, & x\geqslant 0 \end{cases}\;\]
não é uma função contínua porque não é contínua no ponto \(0\in D_f.\,\) No entanto, \(H\) é contínua em cada um dos seguintes subconjuntos do seu domínio \(\mathbb{R}\):
\[\left]-\infty,0\right[,\qquad \left]0,+\infty\right[,\qquad \left]-\infty,0\right[\cup\left]0,+\infty\right[=\mathbb{R}\setminus \{0\}.\]
Vamo-nos dedicar agora a propriedades que resultam da continuidade de uma função num intervalo contido no seu domínio. Recordemos que os intervalos formam um tipo
muito especial de conjuntos. Em particular, é de observar que os intervalos são os únicos conjuntos com a seguinte propriedade:
Um conjunto \(I\subset\mathbb{R}\) é um intervalo sse, dados \(a,b\in I\) arbitrários, todos os pontos entre \(a\) e \(b\) pertencem a \(I.\)
De facto, nesta parte da matéria, esta é a forma mais conveniente de entender o conceito de intervalo.
Teorema de Bolzano (ou do valor intermédio)
Trata-se de um resultado aplicável a intervalos do tipo \(\;I=\left[a,b\right],\;\) com \(\;a\lt b\;\) reais (portanto, finitos), também conhecidos com
intervalos fechados e limitados.
Teorema de Bolzano (ou do valor intermédio).
Seja
\(I=[a,b]\) um intervalo limitado e fechado,
\(f:I\to \mathbb{R},\) uma função contínua em \(I\),
\(f(a)\not=f(b).\)
Então, qualquer que seja \(k\) estritamente compreendido entre \(f(a)\) e \(f(b)\), existe \(c\in\left]a,b\right[\) tal que
\[f(c)=k.\]
É mais uma aplicação do Axioma do supremo.
Vamos supôr, para simplificar ideias, que \(f(a)\lt f(b)\) (pode ver, como exercício, o caso \(f(a)\gt f(b)\)). Tome-se, de acordo com o enunciado, \(k\) tal que
\(f(a)\lt k\lt f(b)\).
Defina-se \(A\) como conjunto de todos os pontos \(x\in I\) tais que
\[f(x)\lt k\,.\]
Então,
\(A\not=\emptyset\): de facto, pela forma como \(k\) foi escolhido, \(a\in A\);
\(A\) é majorado: de facto, \(b\) é um majorante de \(A\) (porque \(A\subset \left[a,b\right]\)).
Logo, pelo axioma do supremo, existe
\[c=\sup A.\]
Verifiquemos agora, que \(c\in\left]a,b\right[\) e que, \(f(c)=k.\)
Por definição de supremo, existe uma sucessão \(x_n\in A\) tal que \(x_n\to c\). Mas \(f(x_n)\lt k\), por definição de \(A\), e logo, por continuidade, teremos
\[k\gt f(x_n)\to f(c),\]
donde concluimos \[f(c)\leqslant k.\]
Isto exclui, em particular, a possibilidade \(c=b\), pelo que \(c\lt b\). Mas, por definição de \(A\) e do supremo, temos
\[x\in\left]c,b\right[\quad\Rightarrow\quad x\notin A\quad \Rightarrow\quad f(x)\geqslant k\]
donde concluimos que
\[f(c^+)\geqslant k.\]
Combinando os resultados anteriores e usando a continuidade em \(c\),
\[k\leqslant f(c^+)=f(c)\leqslant k,\]
pelo que, concluimos que \[f(c)=k,\] e, portanto \(c\not=a\), ou seja, \(c\in\left]a,b\right[\).
∎
Em seguida enunciamos duas consequências que fornecem duas formas úteis de aplicar o teorema de Bolzano. A dedução do primeira com base no teoremaa anterior é imediata.
A segunda é uma forma de reescrever a primeira:
Corolário 1
Uma função \(f\) contínua em todos os pontos entre dois pontos \(a,b\in D_f\) tais que que \(f(a)\) e \(f(b)\) têm sinais diferentes, tem necessariamente um zero entre \(a\) e \(b\).
Corolário 2
Uma função \(f\) contínua em todos os pontos entre dois pontos \(a,b\in D_f\) tal que não se anula em nenhum ponto entre \(a\) e \(b\) não muda de sinal nesse intervalo.
O primeiro resultado é muito útil para detectar zeros de funções e obter intervalos onde sabemos eles estarem o que pode ser muito conveniente para se
obter estimativas sobre esses zeros.
A segunda propriedade é a que nos permite, por exemplo, construir tabelas de sinais de uma função contínua.
Assim, se forem detectados todos os zeros de uma função contínua, sabemos que entre eles a função tem sinal fixo.
Repare que são ambas consequências da continuidade global. Se houver, pelo menos, um ponto em \(I=\left[a,b\right]\) onde a função não seja contínua, ou se o domínio não é um intervalo, então,
aqueles resultados são falsos em geral:
Exemplo 2. \(f:[-1,1]\to \mathbb{R}\) dada por \(f(x)=-1\) se \(x\in\left[-1,0\right[\), e \(f(x)=1\) se \(x\in [0,1]\). Apesar de \(f(-1)\lt 0\lt f(1)\), não existe
\(c\in\left]-1,1\right[\) tal que \(f(c)=0.\) Neste caso, o resultado referido anteriormente não é aplicável porque \(f\) não é contínua em \(I\).
Exemplo 3. \(f:[-1,1]\setminus\{0\}\to \mathbb{R}\) dada por \(f(x)=\dfrac{1}{x}\), para cada \(x\in D_f\). Apesar de \(f(-1)\lt 0\lt f(1)\), não existe
\(c\in D_f\) tal que \(f(c)=0.\) Neste caso, o resultado referido anteriormente não se verifica porque, apesar de \(f\) ser contínua (isto significa, contínua em \(D_f\)!),
o domínio de \(f\) não é um intervalo.
Ponto fixo de uma função \(f\): é qualquer valor \(c\in D_f\) que satisfaz,
\[f(c)=c.\]
De forma equivalente, é qualquer zero da função \(g\) definida por
\[g(x)=f(x)-x.\]
Para mais ilustrações de aplicações do Teorema de Bolzano (ou dos seus corolários), apresentam-se os seguintes exemplos:
Exemplo 4. A equação \(e^x+\sqrt{x}=\sqrt{2}\) tem, pelo menos, uma solução em \(\left]0,1\right[\). De facto, se \(f(x)=e^x+\sqrt{x}\), então \(f\)
é contínua em \(I=[0,1]\), e além disso, \(f(0)=1\), \(f(1)=e+1\gt 2\) e, portanto,
\[f(0)\lt\sqrt{2}\lt f(1).\]
Logo, o Teorema de Bolzano permite-nos concluir o resultado.
Exemplo 5. Seja \(f:\mathbb{R}\to \mathbb{R}\) dada por \(f(x)=e^x-2.\) Então, \(f\) tem dois pontos fixos em \(\mathbb{R}\). Ou seja, a equação
\(f(x)=x\) tem duas soluções. De facto, sendo \(f\) contínua em \(\mathbb{R}\), o mesmo acontecerá com a função \(g(x)=f(x)-x.\;\) Além disso,
\[g(0)=-1\lt 0\;,\qquad g(-2)=e^{-2}\gt 0\;,\qquad g(2)=e^2-4\gt 0\,\]
e o Corolário 3.4.44 (ou o Teorema de Bolzano) permite-nos concluir que \(g\) tem, pelo menos, um zero em \(\left]-2,0\right[\) e, pelo menos, um zero em \(\left]0,2\right[\), ou seja, \(f\) tem, pelo menos, um ponto fixo em cada
um destes intervalos.
NOTA: Para já, não podemos dizer se o número de pontos fixos de \(f\) é exactamente 2. Para isso, teremos que estudar os intervalos de monotonia da função \(g\), o que será feito
com base no estudo do sinal da derivada de \(g\).
Exemplo 6. O polinómio \(x^7-x^4+3\) tem contradomínio \(\mathbb{R}\). De facto, seja \(f(x)=x^7-x^4+3,\;\) a qual é contínua em \(\mathbb{R}\). Então,
\[\lim_{x\to -\infty}f(x)=-\infty\,,\qquad \lim_{x\to +\infty}f(x)=+\infty. \qquad \text{(Verifique!)}\]
Logo, dado um real arbitrário \(k\), existe sempre um \(a\lt 0\), tal que \(f(a)\lt k,\;\) e um \(b\gt 0,\;\) tal que \(f(b)\gt k.\;\) O teorema de Bolzano
permite-nos concluir que existe, pelo menos, um \(c\in\left]a,b\right[\) tal que \(f(c)=k\). Logo, \(k\in C_f\). Como \(k\) é um número real qualquer, concluimos que \(C_f=\mathbb{R}.\)
NOTA: Este é um caso particular do seguinte resultado que se recomenda que demonstre, generalizando o raciocínio deste exemplo:
Qualquer polinómio de grau ímpar tem, pelo menos um zero.
Exemplo 7. Seja \(f:\mathbb{R}\to \mathbb{R}\) contínua, tal que \(\displaystyle\lim_{x\to -\infty}f(x)=0\;\) e \(\;\displaystyle\lim_{x\to +\infty}f(x)=2\). Então, podemos concluir a) e b) seguintes:
(a)\(\quad\left]0,2\right[\subset C_f\).
De facto, seja \(k\in\left]0,2\right[\). Seja \(\varepsilon>0\) tal que, \(\varepsilon\lt k\) e, simultaneamente \(\varepsilon\lt 2-k\).
Então, pela definição de limite, existe \(a\lt 0\) tal que \(|f(a)-0|\lt \varepsilon\), e existe \(b\gt 0\) tal que \(|f(b)-2|\lt \varepsilon\), e portanto,
\[f(a)\lt \varepsilon\lt k,\qquad\text{ e }\qquad f(b)>2-\varepsilon>k.\]
Pelo Teorema de Bolzano, concluimos que existe \(c\in\left]a,b\right[\) tal que \(f(c)=k\). Logo, \(k\in C_f\). Como \(k\) é um ponto arbitrário de \(\left]0,2\right[\), concluimos
que \(\left]0,2\right[\subset C_f\).
(b) Com a hipótese adicional de \(f\) ser estritamente crescente podemos concluir que \(C_f=\left]0,2\right[\).
Efectivamente, suponhamos, por absurdo, que existia \(k\leqslant 0\), tal que \(k\in C_f\), ou seja, tal que existia \(c\) para o qual \(f(c)=k.\)
Como \(f\) é estritamente crescente teríamos, para todo \(x\lt c,\) a desigualdade \(f(x)\lt k.\)
Se \(k\lt 0,\)
isto obviamente iria contradizer \(\;\displaystyle\lim_{x\to -\infty}f(x)=0,\;\) porque nesse caso, para todo \(x\lt c\), teríamos \(\;|f(x)-0|\gt |k|.\;\)
Se \(k=0,\) como \(f\) é estritamente crescente, tomando um qualquer \(\;c'\lt c,\;\) teríamos \(\;f(c')\lt 0\;\) o que seria impossível pelo parágrafo anterior.
De igual modo se pode provar que não existe \(k\geqslant 2\) tal que \(k\in C_f\) (Exercício).
Este resultado é um caso particular da seguinte proposição cuja demonstração segue exactamente os mesmos passos:
Proposição.Seja \(f\) uma função contínua no intervalo aberto \(\left]a,b\right[\subset\mathbb{R},\;\) tal que existem \(f(a^+)\not=f(b^-)\) em \(\overline{\mathbb{R}}\).
Então,
\[\left]f(a^+),f(b^-)\right[\subset f\left(\left]a,b\right[\right)\quad\text{ se }\quad f(a^+)\lt f(b^-),\qquad \text{ ou }\qquad
\left]f(b^-),f(a^+)\right[\subset f\left(\left]a,b\right[\right)\quad\text{ se }\quad f(a^+)\gt f(b^-).\]
Se \(f\) é estritamente monótona, então a relação \(\subset\) é substituida por igualdade em ambos os casos.
Esta proposição é útil para estudar contradomínios de funções contínuas em intervalos:
Como,
\[\lim_{x\to -\infty}f(x)=0,\quad\text{ e }\quad f(0^-)=\lim_{x\to 0^-}\operatorname{arctg}\frac{1}{x}=-\frac{\pi}{2},\]
e como \(f\) é contínua e estritamente decrescente em \(\;\left]-\infty,0\right[,\;\) concluímos que \(\;f(\left]-\infty,0\right[)=\left]-\dfrac{\pi}{2},0\right[.\;\)
Como, por outro lado,
\[f(0^+)=f(0)=0,\quad\text{ e }\quad \lim_{x\to +\infty}f(x)=+\infty,\]
como \(f\) é contínua e estritamente crescente em \(\;\left]0,+\infty\right[\;\) concluímos que \(\;f(\left[0,+\infty\right[)=\left[0,+\infty\right[.\;\)
Se \(f\) é contínua num intervalo \(I,\) então,
dados \(k,l\in f(I),\) pelo teorema de Bolzano temos que todos os valores entre \(k\) e \(l\) pertencem a \(f(I).\)
Relembrando a caracterização dos intervalos dada no início deste guia de estudo, isto é o mesmo que dizer que \(f(I)\) é também um intervalo.
Temos então
a seguinte proposição que pode ser vista como outra forma de enunciar o Teorema de Bolzano:
Proposição. Funções contínuas transformam intervalos em intervalos, ou seja, se o domínio é um intervalo \(I,\) também a sua imagem \(f(I)\) será um intervalo.
Podemos então dizer que, se \(I\) é um intervalo então,
\[f\text{ é contínua em }I\quad\Rightarrow\quad f(I)\text{ é um intervalo.}\]
Será que a recíproca desta afirmação é verdadeira? Ou seja, será que se \(I\) for um intervalo e \(f(I)\) for um intervalo podemos concluir qque \(f\) é contínua em \(I\)?
A resposta é não! Um contraexemplo:
Exemplo 9.
A função \(\;f(x)=\begin{cases} x, & 0\leqslant x\leqslant 1\\ x-1, &1\lt x\leqslant 2\end{cases}\quad\) satisfaz \(f([0,2])=[0,1]\) e, no entanto, não é contínua em \([0,2].\)
No entanto, com uma condição extra já fica verdadeira:
Proposição. Seja \(I\) um intervalo. Então,
\[f \hbox{ é estritamente monótona em }I, \text{ e }f(I)\text{ é um intervalo }\quad\Rightarrow\quad f\text{ é contínua em }I.\]
Vamos supôr que \(I\) é um intervalo aberto: \(I=]a,b[.\)
Vamos também admitir que \(f\) é estritamente crescente. O caso estritamente decrescente deixa-se como exercício.
Como \(f\) é estritamente crescente em \(I,\) dado \(c\in I\) existem \(f(c^-)\) e \(f(c^+)\) e são finitos:
\[f(c^-)=\sup f(]a,c[),\quad f(c^+)=\inf f(]c,b[).\]
Por absurdo, vamos supôr que \(f\) não era contínua em \(c.\) Então teria de ocorrer \(f(c^-)\lt f(c^+).\) Escolhendo um \(k\not=f(c)\) tal que, \(f(c^-)\lt k\lt f(c^+)\),
ter-se-ia \(k\notin f(]a,c[)\cup\{f(c)\}\cup f(]c,b[)=f(I).\) Teríamos então \(f(a^+)\lt k \lt f(b^-)\) tal que \(k\notin f(I)\) o que é absurdo dadas as hipóteses e a caracterização
dos intervalos do início deste guia de estudo aplicado ao intervalo \(f(I)=]f(a^+),f(b^-)[.\)