Limites por enquadramento em \(\overline{\mathbb{R}}\).
Limite da função composta.
Continuidade da soma, produto, quociente e composta de funções contínuas.
Prolongamento por continuidade.
Material de estudo:
[CF] J. Campos Ferreira. Introdução à Análise Matemática, Fundação Gulbenkian, 8a ed., 2005.
Limites por enquadramento em \(\overline{\mathbb{R}}\)
A seguinte propriedade é muito útil para o estudo dos limites em algumas situações em que as propriedades algébricas vistas na aula anterior não são suficientes, tratando-se de uma consequência
directa do teorema das sucessões enquadradas combinado com a definição de limite à Heine:
Teorema (limites por enquadramento em \(\overline{\mathbb{R}}\)) Seja \(a\in\overline{D_h\cap D_g\cap D_f}\) em \(\overline{\mathbb{R}}\)
(portanto, podendo incluir \(a=-\infty\) e \(a=+\infty\)), tal que \(\displaystyle\lim_{x\to a}h(x)=\lim_{x\to a}g(x)=b\in\overline{\mathbb{R}}\) e tais que, numa vizinhança de \(a,\)
\[h(x)\leqslant f(x)\leqslant g(x).\]
Então,
\[\lim_{x\to a}f(x)=b.\]
Se \(\displaystyle\lim_{x\to a}h(x)=+\infty\), então \(\displaystyle\lim_{x\to a}f(x)=+\infty\) e não é preciso considerar a função \(g\).
Se \(\displaystyle\lim_{x\to a}g(x)=-\infty\), então \(\displaystyle\lim_{x\to a}f(x)=-\infty\) e não é preciso considerar a função \(h\).
Demonstração
Considere-se uma sucessão arbitrária \(\;x_n\;\) de termos em \(\;D_h\cap D_g\cap D_f\;\) tal que \(\;\lim x_n=a.\;\) De acordo com a definição de limite à Heine, temos que
\[\lim h(x_n)=\lim g(x_n)=b.\]
Mas então temos, pelo teorema das sucessões enquadradas,
\[\lim f(x_n)=b\]
e o teorema fica provado, novamente pela definição do limite à Heine, agora aplicada a \(\;\displaystyle\lim_{x\to a}f(x).\;\)
∎
Exemplo 1. \(\displaystyle\lim_{x\to 0}x\operatorname{sen}\frac{1}{x}=0,\;\) porque,
\[-|x|\leqslant x\operatorname{sen}\frac{1}{x}\leqslant |x|,\qquad (\text{reparem que se usaram módulos para contemplar o caso } x\lt 0)\] e, além disso,
\(\displaystyle\lim_{x\to 0}(-|x|)= \lim_{x\to 0}|x|=0.\)
Exemplo 2. \(\displaystyle\lim_{x\to +\infty}\frac{x}{x+\cos(\sqrt{x})}=1,\;\) porque, como \(\cos(\sqrt{x})\) é uma função limitada entre -1 e 1, temos que,
para todo \(x\gt 1,\)
\[\frac{x}{x+1}\leqslant\frac{x}{x+\cos(\sqrt{x})}\leqslant \frac{x}{x-1},\]
e, além disso, \(\displaystyle \lim_{x\to +\infty}\frac{x}{x+1}=\lim_{x\to +\infty}\frac{x}{x-1}=1.\)
Exemplo 3. \(\displaystyle\lim_{x\to +\infty}\left(x+\cos\left(\dfrac{1}{x}\right)\right)=+\infty,\;\) porque, como \(\;\cos\left(\dfrac{1}{x}\right)\geqslant -1,\;\) temos que,
para todo \(x,\)
\[x+\cos\left(\dfrac{1}{x}\right)\geqslant x-1,\]
e, além disso,\(\;\displaystyle\lim_{x\to +\infty}(x-1)=+\infty.\;\)
Tal como acontece nas sucessões (relembrar!) a seguinte consequência pode ser de aplicação mais prática (pode servir como justificação alternativa para o exemplo 1 acima, por exemplo):
Corolário: Sejam \(\;f,g\;\) duas funções e \(\;a\in \overline{D_f\cap D_g}\;\) tais que,
\[g\text{ é limitada numa vizinhança de }a\quad \text{ e }\quad\lim_{x\to a}f(x)=0.\]
Então, \(\;\displaystyle\lim_{x\to a}f(x)g(x)=0.\;\)
Exemplo 4. \(\displaystyle\lim_{x\to 0}(1-\cos x)\cos\frac{1}{x}=0,\;\) porque, \(\cos\frac{1}{x}\) é uma função limitada (entre -1 e 1), e
\(\displaystyle\lim_{x\to 0}(1-\cos x)=0.\)
Limite da função composta
O seguinte resultado é muito útil e permite-nos fazer mudanças de variável ao calcular limites:
Teorema (Limite da função composta) Seja \(a\in\overline{D_g}\) e \(b\in\overline{D_f}\). Se \(\displaystyle\lim_{x\to a}g(x)=b,\;\) e
\(\;\displaystyle\lim_{y\to b}f(y)=c,\;\) então,
\[\lim_{x\to a}f(g(x))=\lim_{y\to b}f(y)=c.\]
Usamos a definição à Heine: seja \(x_n\in D_g\) tal que \(x_n\to a\). Então teremos \(g(x_n)\to b,\) uma vez que \(\displaystyle\lim_{x\to a}g(x)=b.\)
Como \(\displaystyle\lim_{y\to b}f(y)=c,\;\) fazendo \(y_n=g(x_n)\), temos também \(f(g(x_n))=f(y_n)\to c.\)
Exemplo 6. \(\displaystyle\lim_{x\to +\infty}x^{\frac{3}{2}}\operatorname{sen}\dfrac{1}{\sqrt{x}}=1,\;\) por mudança de variável \(y=\dfrac{1}{\sqrt{x}}\).
Exemplo 7. \(\displaystyle\lim_{x\to 0}\dfrac{e^{2x^2}-1}{x^2}=\lim_{y\to 0}2\dfrac{e^{y}-1}{y}=2,\;\) por mudança de variável \(y=2x^2\).
Exemplo 8. \(\displaystyle\lim_{x\to +\infty}\dfrac{\ln \cos(1/x)}{1-\cos (1/x)}=\lim_{y\to 1}\dfrac{\ln y}{1-y}=-1.\;\) por mudança de variável \(y=\cos (1/x).\)
Continuidade, operações algébricas e funções compostas
Do teorema visto na aula anterior acerca dos limites de somas, produtos e quocientes de funções e do teorema visto nesta aula sobre o limite de funções compostas, atendendo
à definição de continuidade de uma função num ponto, podemos concluir:
Teorema (continuidade da soma, produto, quociente e composta de funções contínuas)
Seja \(\;a\in D_f\cap D_g\;\) e tal que \(\;f, g\;\) são ambas contínuas em \(\;a.\;\) Então \(\;f\pm g,\;\) \(\;fg,\;\) \(\;\dfrac{f}{g}\;\) (se \(g(a)\not=0\)) são
contínuas em \(\;a.\;\)
Seja \(\;a\in D_f\;\) tal que \(\;f(a)\in D_g.\;\) Se \(\;f\;\) é contínua em \(\;a\;\) e \(\;g\;\) é contínua em \(\;f(a),\;\) então \(\;g\circ f\;\) é contínua em \(\;a.\;\)
(Relembre que \(\;g\circ f(x)=g(f(x))\))
Casos particulares importantes:
Funções polinomiais são contínuas em \(\;\mathbb{R}:\;\) são somas e produtos de funções contínuas (constantes e polinómio \(x\), ambas contínuas)
Funções racionais são contínuas nos seus domìnios: quociente de polinomiais, logo funções contínuas.
A partir da continuidade de \(\operatorname{sen} x\) pode ver-se a continuidade de todas as funções trigonométricas.
Funções hiperbólicas: \(\;\operatorname{senh} x=\dfrac{e^x-e^{-x}}{2}\;\) e \(\;\cosh x=\dfrac{e^x+e^{-x}}{2}\;\) são contínuas em \(\;\mathbb{R}\;\), assumindo que \(\;e^x\;\) é contínua.
Vamos assim admitir que
as funções elementares dadas (polinomiais, racionais, exponencial e trigonométricas) são funções contínuas nos seus domínios.
A partir destas, podemos construir outras usando as operações algébricas ou compondo funções. O resultado serão outras funções contínuas nos seus domínios.
Exemplo 9: A função \(\;f:\mathbb{R}\setminus\{1\}\to \mathbb{R},\;\) dada por \(\;f(x)=\cos\left(e^x+\dfrac{1}{x-1}\right)\;\) é contínua em
\(\;D_f=\mathbb{R}\setminus\{1\}\;\) porque é a composta de uma função trigonométrica (o \(\cos x\)), a qual é contínua em \(\;\mathbb{R},\;\) com a soma da
exponencial, que é contínua em \(\;\mathbb{R},\;\) com uma racional contínua no seu domínio \(\;\mathbb{R}\setminus\{1\}.\;\)
Prolongamento por continuidade
Tomemos o exemplo da função \(\;f:\mathbb{R}\setminus \{1\}\to \mathbb{R},\;\) dada por
\(\;f(x)=\dfrac{2x^2-2}{x-1}.\;\)
Neste caso, não faz sentido falar da continuidade de \(f(x)\) no ponto \(1\) dado que \(1\notin D_f\),
muito embora exista \(\displaystyle\lim_{x\to 1}f(x)\). Reparem entretanto que,
\[f(x)=\frac{2x^2-2}{x-1}=2(x+1),\qquad\text{ para todo }x\not=1.\]
Temos então por um lado, a função \(f\) dada, com domínio \(D_f=\mathbb{R}\setminus \{1\}\). Por outro lado, temos a função \(F\) definida por
\[F(x)=2(x+1)\quad \text{ com domínio } D_F=\mathbb{R}.\]
São duas funções diferentes na medida em que o domínio de \(F\) tem um ponto a mais do que o domínio de \(f\).
No entanto, nos pontos do domínio de \(f\) ambas coincidem. Dizemos então que \(F\) é um prolongamento de \(f\) ao ponto \(x=1\). Além disso,
como \(F\) é contínua no ponto \(x=1\), dizemos então que a função \(F\) é um prolongamento por continuidade de \(f\) ao ponto \(x=1\).
Definição (prolongamento por continuidade) Considere-se uma função \(f\) e um ponto \(a\notin D_f\). Seja \(F\) uma função tal que
\(D_F=D_f\cup\{a\}\) e tal que \(F\) é contínua em \(a\). Dizemos então que a função \(F\) é um prolongamento por continuidade de \(f\) ao ponto \(a\). Se \(f\)
admite um prolongamento por continuidade ao ponto \(a\), dizemos que \(f\) é prolongável por continuidade ao ponto \(a\).
Mais alguns exemplos:
Exemplo 10. \(f(x)=\dfrac{x^2}{x}\), e nesse caso, \(D_f=\mathbb{R}\setminus\{0\}\). A função \(F(x)=x\,\), com \(D_F=\mathbb{R}\,,\) é prolongamento por
continuidade da função \(f\) ao ponto \(x=0\).
Exemplo 11. \(f(x)=\dfrac{x^2}{|x|}\), e nesse caso, \(D_f=\mathbb{R}\setminus\{0\}\). A função \(F(x)=|x|\,\), com \(D_F=\mathbb{R}\,,\) é prolongamento por
continuidade da função \(f\) ao ponto \(x=0\).
Exemplo 12. \(f(x)=\dfrac{|x|}{x}\), e nesse caso, \(D_f=\mathbb{R}\setminus\{0\}\). A função de domínio \(D_F=\mathbb{R}\) dada por
\[F(x)=\begin{cases}
-1, & x\lt 0\\
1, & x\geqslant 0,.
\end{cases}\]
é um prolongamento de \(f\) ao ponto \(0\), mas não é um prolongamento por continuidade de \(f\) a \(0\) (não é uma função contínua em \(x=0\)).
Nos exemplos 10-11, foi fácil explicitar prolongamentos por continuidade por simplificação directa.
No entanto, poderemos ter casos em que não seja fácil ou mesmo possível decidir sobre a existência
de prolongamento por continuidade por explicitação de uma expressão conhecida, como
naqueles exemplos. Um casos destes é, \(f(x)=\dfrac{\operatorname{sen} x}{x}\). Os outros limites notáveis referidos na aula anterior também o são.
Precisamos então de um critério geral que nos dê uma resposta nesses casos:
Teorema (existência de prolongamento por continuidade) Seja \(f:D_f\to \mathbb{R}\) tal que \(a\in\overline{D_f}\),
mas \(a\notin D_f\). Então as seguintes afirmações 1) e 2) são equivalentes:
1) a função \(f\) é prolongável por continuidade ao ponto \(a\);
2) existe \(b=\displaystyle\lim_{x\to a}f(x)\in \mathbb{R}\).
Em caso de existência, esse prolongamento por continuidade é a função \(F\) de domínio \(D_F=D_f\cup\{a\}\) dada por,
\[F(x)=\begin{cases}
f(x)\,, &\text{ se }x\in D_f\\
b\,, &\text{ se }x=a
\end{cases}\]
onde \(b\) é o valor do limite acima.
1)\(\;\Rightarrow\;\) 2):
Suponhamos que \(f\) é prolongável por continuidade ao ponto \(a\) e que \(F\) é esse prolongamento por continuidade. Sendo, por definição,
\(F\) contínua em \(a\) podemos dizer que
\[\displaystyle\lim_{x\to a}F(x)=F(a)\,.\]
Mas, se \(\displaystyle\lim_{x\to a}F(x)\) existe, podemos concluir que também \(\displaystyle\lim_{x\to a}f(x)\) existe e tem o mesmo valor (veja que o conjunto de pontos \(x\) nos quais
é válida a implicação na definição de limite de \(F\) contem o conjunto de pontos que têm que satisfazer essa implicação para que \(f\) tenha esse mesmo limite: são os mesmos
pontos acrescidos do ponto \(a\)). Logo, \[\displaystyle \lim_{x\to a}f(x)=F(a).\] Ou seja, 2) é verdadeira, bem como a expressão para \(F(x)\).
2)\(\;\Rightarrow\;\) 1):
Suponhamos que existe \(b=\displaystyle \lim_{x\to a}f(x)\), e seja \(F(x)\) dada como no enunciado. Veja novamente a implicação na definição de limite. Como existe o limite de \(f\)
sabemos que essa implicação é válida para todo \(x\in V_{\varepsilon}(a)\cap D_f\). Mas então, também é válida para todo \(x\in V_{\varepsilon}(a)\cap D_F\), uma vez que
\(D_F=D_f\cup\{a\}\), e a implicação é trivial para \(x=a\) (porque, de acordo com a definição de \(F\) dada, \(F(a)=b\)). Logo, \(F\) é contínua em \(a\) e, portanto, é prolongamento
por continuidade de \(f\) ao ponto \(a\). Logo, 1) é verdadeira.
Veja a aplicação deste resultado aos exemplos acima. Em particular, no exemplo 12, a não existência de \(\displaystyle\lim_{x\to 0}f(x)\) (a qual pode ser
obtida pela definição, como o fizemos com a função de Heaviside, ou usando limites laterais)
implica que \(f\) não é prolongável por continuidade ao ponto \(0\).
Assim, considerando o seguinte limite notável,
\[\lim_{x\to 0}\dfrac{\operatorname{sen} x}{x}=1,\]
concluimos que a função \(f(x)=\dfrac{\operatorname{sen} x}{x}\) de domínio \(D_f=\mathbb{R}\setminus\{0\}\) admite o seguinte prolongamento
por continuidade ao ponto \(0\):
\[F(x)=\begin{cases}
\dfrac{\operatorname{sen} x}{x}\,, &\text{ se }x\neq 0\\
1\,, &\text{ se }x=0
\end{cases}\]