Aula teórica 14

Limites e continuidade de uma função num ponto.
Definição de continidade.
O carácter local da continuidade
Limites laterais e continuidade

Material de estudo:

Continuidade de uma função num ponto.

Definição de continuidade.

Este conceito está estreitamente relacionado com o de limite:

Definição de continuidade: Seja \(a\in D_f\). Dizemos que \(\;f\;\) é contínua no ponto \(a\) sse \[b=\lim_{x\to a}f(x)\;\text{ existe em }\mathbb{R}.\]

Reparem no facto desta definição pressupôr que o ponto \(a\) pertence ao domínio da função \(f\), contrariamente à de limite dada na aula anterior, na qual apenas se impunha que \(a\) fosse um ponto aderente a esse mesmo domínio.

Agora, a ideia intuitiva que temos da continuidade é que os valores que \(f(x)\) toma para \(x\) "perto de \(a\)" aproximam o valor \(f(a).\;\) Este facto não está imediatamente explícito na definição anterior mas resulta dela:

Proposição: Seja \(a\in D_f\). Se \(f\) é contínua em \(a\), então \[\lim_{x\to a}f(x)=f(a).\]

Demonstração

É imediata, se usarmos o conceito de limite à Heine. Por hipótese, \(f\) é contínua em \(a,\;\) ou seja, existe \(\;\displaystyle b=\lim_{x\to a}f(x).\; \) Relembremos então que, para qualquer sucessão \(x_n\) em \(D_f\) se tem que, se \(\lim x_n=a\) então \(\lim f(x_n)=b.\;\) Tomemos, em particular, a sucessão constante \(x_n=a.\;\) Como, nesse caso, \(\;\lim x_n=\lim a=a,\;\) teremos \(\lim f(x_n)=b.\;\) Por outro lado \(\;f(x_n)=f(a)\;\) é uma sucessão constante e, portanto, \(\;\lim f(x_n)=\lim f(a)=f(a).\;\) Logo, \(\;b=f(a)\;\) e fica provada a proposição.

Isto quer dizer que, na definição de continuidade, não precisamos de exigir que \(\;\displaystyle\lim_{x\to a}f(x)=f(a):\;\) a simples existência do limite implica este facto!

Relembrando a definição de limite da aula anterior, podemos então escrever simbolicamente que \(f\) é contínua em \(a\) sse, \[\forall_{\varepsilon\gt 0}\exists_{\delta\gt 0}\forall_{x\in D_f}\quad |x-a|\lt\delta\;\Rightarrow\;|f(x)-f(a)|\lt \varepsilon.\] Isto mostra que, de facto, a ideia da propriedade da continuidade corresponde ao facto de podermos aproximar tão bem quanto quisermos \(f(a)\) por \(f(x)\) para valores de \(x\) suficientemente próximos de \(a.\)

Exemplos:

Revisitando um por um, os exemplos de existência e de não existência de limite da aula anterior (considerando apenas obviamente aqueles em que \(\;a\in D_f\;\)), temos que \(\;\sqrt{x},\;\) \(\;x-1,\;\) \(\;|x|\;\) são contínuas em cada ponto dos seus domínios, enquanto que, a função de Heaviside não é contínua em \(\;a=0\;\) e a função \(f(x)=x-1,\;\) se \(\;x\geqslant 1,\;\) e \(\;f(x)=x+1,\;\) se \(\;x\lt 1,\;\) não é contínua em \(a=1.\;\) Por outro lado, aplicando a definição de limite à Heine, é muito fácil ver que estas últimas duas funções são contínuas em todos os outros pontos de \(\mathbb{R}.\)

Uma propriedade muito importante que resulta de imediato da própria definição de continuidade é que a continuidade de \(f\) num ponto \(a\) só depende de \(f(x)\) numa vizinhança de \(a\). Ou seja, qualquer alteração de \(f(x)\) em pontos fora dessa vizinhança não altera a propriedade da continuidade de \(f\) em \(a.\) De uma forma mais precisa podemos dizer que,

Proposição: Sejam \(\;f,g\;\) duas funções para as quais existe \(\varepsilon>0\) tal que, para todo \(\;x\in\left]a-\varepsilon,a+\varepsilon\right[,\;\) \(f(x)=g(x).\) Então, \(f\) é contínua no ponto \(a\) sse \(g\) o fôr.

Esta propriedade estabelece o carácter local da continuidade.

É esta propriedade que nos permite dizer, por exemplo, que se para todo \(x\gt 0,\;\) \(f(x)=x^2\;\) então, independentemente do que fôr nos outros pontos do seu domínio, \(f(x)\) é contínua em qualquer \(a\gt 0.\)

Limites laterais

Vimos atrás, em exemplos anteriores, que, por vezes é conveniente, no estudo do limite ou continuidade num ponto \(a\), separar os casos \(\;x\lt a\;\) e \(\;x\gt a:\;\)

Definição (limites laterais esquerdo e direito):

Reparem que podíamos ter dito, muito simplesmente, que \(f(a^-)\) é o limite no ponto \(a\) da restrição de \(\;f(x)\;\) a \(\;D_f\cap\left]-\infty,a\right[.\;\) De forma semelhante, podíamos ter dito, muito simplesmente, que \(f(a^+)\) é o limite no ponto \(a\) da restrição de \(\;f(x)\;\) a \(\;D_f\cap\left]a,+\infty\right[.\;\)

É fácil ver que temos o seguinte critério para a existência de limite

Proposição. Seja \(f:D_f\to \mathbb{R}\), e \(a\) aderente, quer a \(D_f\cap\left]-\infty,a\right[\), quer a \(D_f\cap\left]a,+\infty\right[\). O segundo caso é equivalente à continuidade de \(f\) em \(a.\)

Exemplo 1. Seja \(f(x)=\begin{cases}1+x,&\text{ se }x\leqslant 2\\ 1-x,&\text{ se }x\gt 2 \end{cases},\quad\) \(D_f=\mathbb{R}\). Então, \[f(2^-)=\lim_{x\to 2^-}f(x)=\lim_{x\to 2^-}(1+x)=1+2=3\\,\qquad\qquad f(2^+)=\lim_{x\to 2^+}f(x)=\lim_{x\to 2^+}(1-x)=1-2=-1.\]

A justificação do cálculo de \(f(2^-)\) é que, para \(x\lt 2\), \(f(x)=1+x\), e, \(\displaystyle\lim_{x\to 2}(1+x)=3\), que será, por sua vez, igual a \(\displaystyle\lim_{x\to 2^-}(1+x)=3\), pela observação feita antes do exemplo.

Reparem que o valor de \(f(x)\) no ponto \(x=2\) não intervem neste cálculo: De facto, para \(f(2^-)\) apenas intervêm os valores de \(f(x)\) em pontos de \(]2-\varepsilon,2[\), e, para \(f(2^+)\) apenas os valores de \(f(x)\) em pontos de \(]2,2+\varepsilon[\), em que, em ambos os casos, \(\varepsilon >0\).

Como \(f(2^-)\not=f(2^+)\) concluimos que não existe \(\displaystyle\lim_{x\to 2}f(x).\)

Definição Se \(f(a)=f(a^-)\) disemos que \(f\) é contínua à esquerda, e se \(f(a)=f(a^+)\) dizemos que \(f\) é contínua à direita.

É claro que, nas condições da proposição anterior, \(f\) é contínua em \(a\) sse \(f\) é contínua tanto à esquerda como à direita em \(a\). Por exemplo, se tivermos uma função definida por ramos por \[f(x)=\begin{cases}g_1(x)&\text{ se }x\lt a\\ g_2(x)&\text{ se }x\geqslant a \end{cases}\] e se \(g_2\) for contínua em \(a\) então, \(f\) será contínua à direita em \(a\). Em seguida, determinamos a existência de \(g_1(a^-)\): em caso de existência, teremos \(f(a^-)=g_2(a^-)\) e, nesse caso, se, \(f(a)=f(a^-)\) teremos que \(f\) é contínua em \(a\). Por outro lado, da propriedade local da continuidade vista atrás, \(f\) será contínua nos outros pontos, sse \(g_1\) for contínua em \(]-\infty,a[\) e \(g_2\) for contínua em \(]a,+\infty[\) (a continuidade num ponto só depende de uma vizinhança desse ponto).

Exemplo 2. Função de Heaviside \[H(x)=\begin{cases}1, &\text{ se }x\geqslant 0\\ 0,& \text{ se }x\lt 0.\end{cases}\]

Se \(a\not=0\,,\) temos que \(H\) é constante numa vizinhança de \(a,\) (0, se \(a\lt 0\), 1, se \(a\gt 0\)). Logo, se \(a\not=0\), \(H\) é contínua em \(a\) e temos, \[\lim_{x\to a}H(x)=0\quad\text { se }a\lt 0,\qquad\text{ e }\qquad\lim_{x\to a}H(x)=1\quad\text { se }a\gt 0.\] Se \(a=0\), \(H(0^-)=0\), \(H(0^+)=1\). Então, \[H(0^-)\not=H(0^+),\] e, portanto, não existe \(\displaystyle\lim_{x\to 0}H(x)\) e \(H\) não é contínua em \(0\). No entanto, como \(H(0^+)=H(0)\), a função \(H\) é contínua à direita.

Exemplo 3. \(f(x)=\dfrac{\sqrt{x^2}}{x}.\;\) \(D_f=\mathbb{R}\setminus\{0\}\). Esta função também se escreve na forma, \[f(x)=\frac{|x|}{x}=\begin{cases}1,&\text{ se }x\gt 0\\-1,&\text{ se }x\lt 0.\end{cases}\]

Temos \(f(0^+)=1\not=f(0^-)=-1,\) logo, não existe \(\displaystyle\lim_{x\to 0}f(x)\). Com uma justificação semelhante ao do exemplo anterior, concluimos que \(f\) é contínua em qualquer \(x\not 0\), ou seja, no seu domínio \(D_f\).

Exemplo 4. Seja \(k\in\mathbb{R},\;\) e, \[f(x)=\begin{cases}\sqrt{x},&\text{ se }x\geqslant 0,\\x+k,&\text{ se }x\lt 0,\end{cases}\qquad D_f=\mathbb{R}\,.\] Temos que \(f\) é contínua em qualquer \(a\not=0,\) já que, para \(a\gt 0\), è dada numa vizinhança de \(a\) por \(\sqrt{x}\), que é contínua em \(a\), e, para \(a\lt 0,\) é dada numa vizinhança de \(a\) por \(x+k\) que é também contínua em \(a\), para qualquer constante real \(k\).

Para \(a=0\), temos que \(f\) é contínua à direita, porque \(\sqrt{x}\) é contínua à direita em \(0\), e, logo, \[f(0^+)=\lim_{x\to 0^+}\sqrt{x}=0=f(0)\,.\] Por outro lado, \[f(0^-)=\lim_{x\to 0^-}(x+k)=k,\,.\] Assim, \[f\;\text{é contínua em }0\quad\Longleftrightarrow\quad f(0^-)=f(0^+)=f(0)\quad\Longleftrightarrow\quad k=0\,.\]

Observação. Nem sempre é necessário, nem útil, separar os casos \(a^-\) e \(a^+\) como temos estado a fazer nesta aula. De facto, nos casos anteriores a utilidade dos limites laterais vinham do facto daquelas funções serem dadas por expressões diferentes, quando \(x\gt a\) e quando \(x\lt a.\) Mas, por vezes, uma função \(f\) é dada por expressões diferentes em outros tipos de subconjuntos do domínio, como se vê nos sguintes exemplos:

Exemplo 5. Função de Dirichlet: \[d(x)=\begin{cases}1,&\text{ se }x\in\mathbb{Q},\\0,&\text{ se }x\notin\mathbb{Q},\end{cases}\qquad D_d=\mathbb{R}\,.\]

Vamos ver que esta função não tem limite, e não é portanto contínua, em ponto nenhum.

Para \(a\in\mathbb{R},\) tomamos,

  • uma sucessão \(r_n\in\mathbb{Q},\;\)tal que, \(\;r_n\to a\)
  • uma sucessão \(x_n\in\mathbb{R}\setminus\mathbb{Q},\;\)tal que, \(\;x_n\to a\),
  • o que é sempre possível, já que vizinhanças arbitariamente pequenas de \(a\) contém sempre racionais e irracionais, como já vimos numa aula anterior. Temos então, para todo \(n\in\mathbb{N},\) \(d(r_n)=1\) e \(d(x_n)=0\), e, portanto, \[\lim r_n=\lim x_n=a,\quad\text{ mas, }\quad\lim d(r_n)=1\not=\lim d(x_n)=0\.\] Logo, não existe \(\displaystyle\lim_{x\to a}d(x)\).

    Exemplo 6. \(f(x)=xd(x),\quad\) \(D_f=\mathbb{R}\).

    Para \(a=0\), temos, para qualquer sucessão \((x_n)\) que satisfaça \(x_n\to 0\), temos que \[f(x_n)=x_nd(x_n)\to 0,\] porque \(d\) é uma função limitada e \((x_n)\) é um infinitésimo (ou por enquadramento). Logo, \[\lim_{x\to 0}f(x)=0=f(0)\] e é contínua em \(0.\) É descontínua em todos os outros pontos (Exercício).