Limites e continuidade de uma função num ponto. Definição.
Definição de limite.
Limites de funções usando sucessões: definição à Heine.
Equivalência das duas definições de limite.
Material de estudo:
Observação importante: o conceito de limite introduzido nesta disciplina difere ligeiramente do apresentado no texto de apoio [AB], mas coincide com o do livro [CF]. Sobre esse assunto veja a observação no fim deste guia de estudo. Note, contudo, que essa diferença será irrelevante nas situações que se nos depararão no resto da matéria.
que se lê: "\(b\) é o limite de \(f(x)\) quando \(x\) tende para \(a\)", ou mais simplesmente, "\(b\) é o limite de \(f(x)\) em \(a\)".
A ideia intuitiva de limite pode ser dada pela seguinte frase:
Para começar, note que no símbolo atrás figuram 3 objectos: uma função \(f(x)\) e dois reais \(a\) e \(b\).
Seja então \(f:D_f\to\mathbb{R}\) uma função dada.
Começemos por ver para que pontos \(a\) fará sentido discutir o conceito de limite. Queremos discutir o limite de \(f(x)\) não só em pontos de \(D_f\) mas também naqueles que, embora não pertencentes a \(D_f\), possam ser aproximados por pontos deste conjunto (de alguma forma estão "encostados" a \(D_f\)). Assim, por exemplo, logo à partida não fará sentido falar de \(\displaystyle\lim_{x\to 0}f(x)\) quando \(f(x)=\sqrt{x-1}\), mas já fará sentido falar do mesmo limite quando \(f(x)=\dfrac{\operatorname{sen}x}{x}\), embora \(0\) não pertença ao domínio de nenhuma das duas funções. Introduzimos estes pontos na definição seguinte:
Definição (ponto aderente): Seja \(A\subset\mathbb{R}\). Dizemos que um real \(a\) é um ponto aderente a \(A\) sse, para qualquer vizinhança-\(\varepsilon\) de \(a\), \(V_{\varepsilon}(a)\), se tem, \[V_{\varepsilon}(a)\cap A\ne\emptyset\,.\]
Dito de outra forma: há pontos de \(A\) arbitrariamente próximos do ponto \(a\).
Exemplos: Seja \(A=]0,1]\). Então, \(0\), \(\dfrac{1}{2}\) e \(1\) são pontos aderentes a \(A\), enquanto que \(-1\) e \(2\) já não o serão.
Repare o facto ilustrado por este exemplo de que qualquer ponto de um conjunto \(A\) é, ele próprio, um ponto aderente a \(A\).
Definição (aderência de um conjunto): A aderência de um conjunto \(A\), a qual designamos por \(\overline{A}\), é o conjunto de todos os pontos aderentes ao conjunto \(A\).
Exemplos: \begin{align*} A&=]0,1]\quad \Rightarrow\quad \overline{A}=[0,1],\\ A&=[0,1]\quad \Rightarrow\quad \overline{A}=[0,1],\\ A&=\mathbb{R}\setminus\{0\}\quad\Rightarrow\quad \overline{A}=\mathbb{R},\\ A&=\mathbb{Q}\quad\Rightarrow\quad \overline{A}=\mathbb{R},\\ A&=\mathbb{R}\setminus\mathbb{Q}\quad\Rightarrow\quad \overline{A}=\mathbb{R}\,. \end{align*}
Podemos agora definir a noção de limite. Sejam dados uma função \(f:D_f\to\mathbb{R}\) e um ponto \(a\in\overline{D_f}\). Vamos precisar um pouco mais a ideia contida na "definição" do início deste guia:
A ideia base daquela "definição" é que, para garantir que \(f(x)\) "não se afaste de \(b\)" mais do que \(\varepsilon\) (um "nível de exigência"), basta controlar a distância de \(x\) a \(a\), bastando para isso, garantir que \(x\) se mantenha a uma distância de \(a\) inferior a uma certa "tolerância", \(\delta\), a qual, em príncipio, será tanto menor quanto menor for \(\varepsilon\) (ou seja, "quanto maior for o grau de exigência"). Esta mesma afirmação tem que se verificar para qualquer nível de exigência \(\delta\).
Por outro lado, relembre que dizer que "\(f(x)\) está a uma distância de \(b\) inferior a \(\varepsilon>0\)" é afirmar que \(|f(x)-b|<\varepsilon\). De igual forma, dizer que "\(x\) está a uma distância de \(a\) inferior a \(\delta>0\)" é afirmar que \(|x-a|<\delta\).
Sendo assim, a definição rigorosa de limite que corresponde àquela ideia posta de forma imprecisa no início é a seguinte:
Definição (limite de uma função num ponto). Seja \(f:D_f\to\mathbb{R}\) e \(a\in\overline{D_f}\). Diz-se que, para um certo real \(b\), \[ \lim_{x\to a}f(x)=b, \] sse, para qualquer \(\varepsilon>0\), existe \(\delta>0\), tal que, para cada \(x\in D_f\) se tenha, \[|x-a|<\delta\quad\Rightarrow \quad |f(x)-b|<\varepsilon.\]
Simbolicamente, \(\displaystyle b=\lim_{x\to a}f(x)\) sse \[\forall_{\varepsilon>0}\;\exists_{\delta>0}\;\forall_{x\in D_f}\quad |x-a|\lt \delta \;\Rightarrow\; |f(x)-b|\lt \varepsilon.\]
Demonstra-se, mas não o vamos fazer, que se este limite existir ele é único, o que torna a expressão \(\displaystyle\lim_{x\to a}f(x)\) bem definida, ou seja, em caso de existência ela representa um real bem preciso.
Exemplos de uso direto da definição:
Exemplo 1. Considere a função \[f(x)=\frac{2x^2-2}{x-1}\,\quad\text{ com domínio }D_f=\mathbb{R}\setminus\{1\}.\] Vamos ver que \(\displaystyle\lim_{x\to 1}f(x)=4:\)
Para começar, notemos que \(1\in\overline{D_f}\). Seja \(x\in D_f.\) Vejamos o que significa para \(x\) a condição \(|f(x)-4|<\delta\): \[\left|\frac{2x^2-2}{x-1}-4\right|=|2(x+1)-4|=|2x-2|=2|x-1|.\] Logo, para que a condição \(|f(x)-4|<\delta\) seja cumprida, basta que \(2|x-1|<\delta\), ou seja, que \(|x-1|<\dfrac{\delta}{2}\). Repare que esta escolha é sempre possível, não interessa quão pequeno é \(\delta.\) Vejamos então que está satisfeita a definição de limite:
Exemplo 2. Considere a função \(f(x)=\sqrt{x}\), com domínio \(D_f=[0,+\infty[.\) Seja \(a\geqslant 0\). Demonstremos que \[\lim_{x\to a}\sqrt{x}=\sqrt{a}.\] Prosseguindo com a mesma estratégia do exemplo anterior, vejamos, em termos de condições sobre \(x\), como podemos garantir que \(|f(x)-\sqrt{a}|<\delta\): \[|\sqrt{x}-\sqrt{a}|=\left|\frac{x-a}{\sqrt{x}+\sqrt{a}}\right|\leqslant \frac{|x-a|}{\sqrt{a}},\] Logo, dado \(\delta>0\) arbitrário, a condição \(|\sqrt{x}-\sqrt{a}|<\delta\) é cumprida se \(\frac{|x-a|}{\sqrt{a}}<\delta\), ou seja, se \(|x-a|<\delta\sqrt{a}\). Assim,
Exemplo 3. Um exemplo de não existência de limite. Considere a seguinte função de domínio \(D_f=\mathbb{R}\) vulgarmente designada por função de Heaviside: \[ f(x)= \begin{cases} 0, &\text{ se }x\lt 0\\ 1, &\text{ se }x\geqslant 0 \end{cases} \] Provemos, usando a definição, que esta função não tem limite em \(a=0\). Façamo-lo por absurdo: suponhamos que existia \(\displaystyle b=\lim_{x\to 0}f(x)\). Então, de acordo com a definição de limite, tomando por exemplo, \(\delta=\dfrac{1}{2}\), existiria \(\varepsilon>0\) tal que, para todo \(x\in\left]-\varepsilon,\varepsilon\right[\) se teria \(|f(x)-b|<\dfrac{1}{2}\). Mas isto significaria que, \[ \begin{align*} x\in\left]-\varepsilon,0\right[ \Rightarrow |0-b|<\dfrac{1}{2}\,,\\ x\in\left[0,\varepsilon\right[ \Rightarrow |1-b|<\dfrac{1}{2}\,. \end{align*} \] Como ambas as condições se teriam que verificar simultaneamente, teríamos então necessariamente que \[b\in \left]-\dfrac{1}{2},\dfrac{1}{2}\right[\;\cap\;\left]\dfrac{1}{2},\dfrac{3}{2}\right[=\emptyset,\] o que, obviamente, é absurdo. Logo, a hipótese admitida de que existe o limite considerado é falsa.
Mais à frente veremos uma forma mais simples de provar a não existência de limite neste caso, quando estudarmos os limites laterais.
Aconselha-se o estudo do exercício resolvido 1. da lista [LF], como um exemplo extra.
Atrás definimos o limite de uma função \(f\) num ponto \(a\): \[\lim_{x\to a}f(x)=b\,.\]
À definição dada chamaremos de definição de limite segundo Cauchy.
A seguinte definição, que designaremos por definição de limite segundo Heine, expressa a ideia de que, sempre que \(x\to a\), então \(f(x)\to b\), qualquer que seja "forma como \(x\) se aproxima de \(a\)". Esta ideia intuitiva, mas imprecisa, é rigorosamente traduzida na forma de sucessões. Por essa razão também aparece na literatura com a designação de definição de limite sequencial ("sequência"="sucessão").
Definição (limite segundo Heine). Seja \(f:D_f\to \mathbb{R}\) e \(a\in\overline{D_f}\). Diz-se que, segundo Heine, \[\lim_{x\to a}f(x)=b\] sse para qualquer sucessão \(x_n\in D_f\), tal que \(\lim x_n=a\), temos \(\lim f(x_n)=b.\)O resultado seguinte diz-nos então que podemos usar o que sabemos sobre sucessões para estudar o limite de funções:
Teorema (equivalência entre as definições de limite). Seja \(f:D_f\to \mathbb{R}\) e \(a\in\overline{D_f}\). Então, \[\text{definição de limite segundo Cauchy}\quad\Longleftrightarrow\quad\text{definição de limite segundo Heine}.\]
Cauchy \(\,\Longrightarrow\,\) Heine:
Seja \(b=\displaystyle\lim_{x\to a}f(x)\) o limite segundo Cauchy e, seja \((x_n)\) uma sucessão qualquer de termos em \(D_f\) tal que \(\lim x_n=a\).
Combinamos em seguida as definições de limite de uma função (à Cauchy) e de limite de uma sucessão:
Heine \(\,\Longrightarrow\,\) Cauchy:
Esta implicação é equivalente a (~ Cauchy \(\Longrightarrow\) ~ Heine). É esta que vamos provar, mostrando que, se \(b\) não é \(\displaystyle\lim_{x\to a}f(x)\) (~ Cauchy), então existe, pelo menos, uma sucessão \(x_n\in D_f\) tal que \(\lim x_n=a\), mas não verificando \(\lim f(x_n)=b\;\) (~ Heine).
Da negação da definição à Cauchy, depreende-se que existe um \(\delta\gt 0\), tal que, seja qual for \(\varepsilon>0\), é sempre possível encontrar \(x\in D_f\) tal que \(|x-a|\lt\varepsilon,\) mas \(|f(x)-b|\geqslant\delta.\)
Tomando atrás, sucessivamente \(\varepsilon=1/n\) e o correspondente valor \(x=x_n\), \(n=1,2,3,\dots\), temos que, \[|x_n-a|\lt\frac{1}{n}\to 0\,\quad\text{e, }\, |f(x_n)-b|\geqslant \delta.\] Logo, temos \(\lim x_n=a\), sendo falso que \(\lim f(x_n)=b\), como queríamos demonstrar.
Exemplo 1. \(f(x)=x-1\), com \(D_f=\mathbb{R}\).
Seja \(a\in\mathbb{R}\) e suponhamos que \(x_n\to a\). Então, \[f(x_n)=x_n-1\;\to\; a-1\quad \text{e, logo, }\quad\lim_{x\to a}f(x)=a-1.\]
Exemplo 2. \(f(x)=|x|\), com \(D_f=\mathbb{R}\).
Seja \(a \gt 0\). Se \(x_n\to a\), existe uma ordem \(p\) tal que, para \(n>p\), temos \(x_n\gt 0\) e, nesse caso, \[f(x_n)=|x_n|=x_n \;\to\; a\quad \text{e, logo, }\quad\lim_{x\to a}f(x)=a.\] Seja \(a \lt 0\). Neste caso, se \(x_n\to a\), existe uma ordem \(p\) tal que, para \(n\gt p\), temos \(x_n\lt 0\) e, \[f(x_n)=|x_n|=-x_n \;\to\; -a\quad \text{e, logo, }\quad\lim_{x\to a}f(x)=-a.\] Seja \(a = 0\). Já sabemos que \(x_n\to 0\) é equivalente a \(|x_n|\to 0\), e nesse caso, \[f(x_n)=|x_n| \;\to\; 0\quad \text{e, logo, }\quad\lim_{x\to 0}f(x)=0.\] Em qualquer dos casos, temos, \[ \lim_{x\to a}f(x)=|a|\,. \] Também se pode aplicar aqui uma observação semelhante à do exemplo 1.
Exemplo 3. \(f(x)=\begin{cases}x-1, & \text{ se }x\geqslant 1\\ x+1, & \text{ se }x\lt 1\end{cases}\;\), com \(\;D_f=\mathbb{R}\).
Vejamos o caso \(a=1\). Considerem-se as duas sucessões \((x_n)\) e \((y_n)\) seguintes, ambas com limite 1:
(uma vez que \(x_n\gt 1\) e \(y_n \lt 1\)). Como \(\lim x_n=\lim y_n=1\), mas, \(\lim f(x_n)\not=\lim f(y_n)\), concluimos que \(\displaystyle \lim_{x\to 1}f(x)\) não existe.
Também podíamos ter considerado logo a sucessão \(x_n=1+\frac{(-1)^n}{n}\) e, neste caso, \(f(x_n)\) não teria limite (verifique!), o que nos permitia tirar a mesma conclusão.
(Veremos que, para este caso, a não existência de limite pode ser obtida de outra forma, recorrendo a limites laterais.)
Exemplo 4. \(\,\displaystyle f(x)=\cos\frac{1}{x}\;\), com \(\;D_f=\mathbb{R}\setminus\{0\}\). (Pode ver o gráfico em https://www.desmos.com/calculator)
Vejamos o caso \(a=0\in \overline{D_f}\setminus D_f\). Considerem-se as duas sucessões \((x_n)\) e \((y_n)\) seguintes, ambas com limite 0:
Como \(\lim x_n=\lim y_n=0\), mas, \(\lim f(x_n)\not=\lim f(y_n)\), concluimos que \(\displaystyle \lim_{x\to 1}\cos\frac{1}{x}\) não existe.
Também podíamos ter considerado logo a sucessão \(\displaystyle x_n=\frac{1}{n\pi}\) e, neste caso, \(f(x_n)\) não teria limite (verifique!), o que nos permitia tirar a mesma conclusão.
Sugere-se fortemente que refaçam este argumento (com as adaptações necessárias) para provar que \(\;\displaystyle f(x)=\operatorname{sen}\frac{1}{x}\;\) também não tem limite em \(\;a=0.\)
Reparem que usamos duas estratégias diferentes para provar que há limite ou provar que não há limite: no primeiro caso temos que considerar uma sucessão qualquer e, no segundo, basta dar um exemplo de uma sucessão \(x_n\to a\) mas com \(f(x_n)\) não convergente, ou duas sucessões \(x_n,y_n\), com o mesmo limite \(a\) mas \(f(x_n),f(y_n)\) com diferentes limites.
Veja que não existe \(\;\displaystyle\lim_{x\to a}f(x)\;\)porque existem pelo menos duas sucessões \(v_n\) e \(w_n\) com limite \(a\) mas cujas imagens tendem para limites diferentes \(b\) e \(c\). Alternativamente, a mesma conclusão se poderá tirar do facto de existir pelo menos uma sucessão \(u_n\) com limite \(a\) mas a sucessão das imagens não tem limite, por ter dois sublimites diferentes \(b\) e \(c\).