Aula teórica 19

Os Teoremas de Rolle e de Lagrange. Aplicações.

Material de estudo:

Observação importante: Prosseguimos o estudo baseado no texto [AB]. Recomenda-se que, para acompanhar o estudo desta aula, os alunos estudem os exercícios resolvidos 1 - 9 da lista [RLC]. Também lhes poderá ser útili assistir às aulas em video 14 e 15 em [MA].

Nesta aula e na próxima vamos estudar os Teoremas de Rolle, Lagrange e Cauchy. Depois de, nas aulas anteriores, termos estudado o conceito de derivada e termos visto as suas propriedades locais, ou seja, aquelas que só dependendem da derivada num ponto, e suas implicações para uma vizinhança deste ponto (relação com continuidade, extremos relativos) e regras de cálculo de derivadas, vamos agora aplicar esse conceito ao estudo de funções. Esse estudo é baseado nas consequências daqueles três teoremas os quais, por esse motivo, são por vezes designados pelos Teoremas Fundamentais do Cálculo Diferencial. Não vamos insistir nesta designação para não haver confusão com o Teorema Fundamental do Cálculo que veremos mais adiante, relacionado com o Integral.

O Teorema de Rolle

É o teorema 3.8.26 da página 76 de [AB]. Considerando sempre \(a,b\) dois números reais tais que \(a\lt b\):

Teorema de Rolle. Seja \(f\) uma função contínua em \(\left[a,b\right]\) e diferenciável em \(\left]a,b\right[\).
Se \(f(a)=f(b)\), então existe \(c\in\left]a,b\right[\) tal que, \[f'(c)=0\,.\]

Veja a sua demonstração em [AB]. Constate que se trata de uma consequência do Teorema de Weierstrass, o qual, com as condições do Teorema de Rolle permite concluir que \(f(x)\) tem um extremo num \(c\in\left]a,b\right[\) e portanto, com o teorema da última aula sobre extremos relativos podemos concluir que \(f'(c)=0\).

Interpretação geométrica: No gráfico de uma função nas condições do teorema, entre dois pontos com a mesma ordenada há pelo menos um ponto de tangente horizontal.

Estude os exemplos 3.8.28 e 3.8.29 de [AB]. Veja, em particular o segundo que mostra a importância de nos assegurarmos que todas as hipóteses do teorema são verificadas, quando se proceder à sua aplicação.

Consequências importantes:

São os corolários 3.8.30 e 3.8.31 de [AB]. Vamos refrasear o segundo de forma equivalente mas com uma redacção ligeiramente diferente da de [AB] por forma a sugerir mais directamente o modo como se emprega.

Corolário 1. Entre dois zeros de uma função diferenciável \(f(x)\) num intervalo há pelo menos um zero da derivada \(f'(x)\).

Corolário 2. Um função \(f(x)\) diferenciável num intervalo no qual a derivada não possui zeros, não pode ter mais do um zero nesse intervalo.

Estes resultados resultam facilmente do Teorema de Rolle. Tente obtê-los.

Se eliminarmos a hipótese de \(f\) ser diferenciável em \todos os pontos do intervalo, a conclusão do corolário pode não ser verdadeira (ver observação em [AB] a seguir ao Teorema de Rolle). veja, por exemplo,

Exemplo 1. Seja \(f(x)=x^{2/3}\). Então \(f(-1)=f(1)=1\) e, no entanto, não existe nenhum ponto onde \(f'\) seja zero (verifique). Isto ocorre porque \(f\) não é diferenciável em \(x=0\). Outro exemplo nas mesmas condições seria \(f(x)=1-|x|\).

EXEMPLOS DE APLICAÇÂO:

Exemplo 2. Mostre que, se \(f\) é duas vezes diferenciável (isto é, \(f''=(f')'\) existe e é finita em todos os pontos de \(\mathbb{R}\)), e tem 3 zeros, então \(f''\) tem, pelo menos, um zero.
Resposta: Se \(f(r_1)=f(r_2)=f(r_3)=0\), com \(r_1\lt r_2\lt r_3\), então, pelo teorema de Rolle (ou pelo Corolário 1), existem \(s_1\in\left]r_1,r_2\right[\) e \(s_2\in\left]r_2,r_3\right[\) tais que \(f'(s_1)=f'(s_2)=0\). Aplicando uma segunda vez o mesmo resultado, concluimos que existe (pelo menos) um zero de \(f''\) em \(\left]s_1,s_2\right[.\)

Exemplo 3. Justifique que a equação \(e^x=3x\) tem exactamente 2 soluções.
Vemos separadamente:
(i) Teorema de Bolzano: tem, pelo menos 2 soluções:
Resposta: Seja \(f(x)=e^x-3x.\) Então \(\displaystyle\lim_{x\to -\infty}f(x)=\lim_{x\to +\infty}f(x)=+\infty\), \(f(1)\lt 0\). Logo, existem \(c_1\lt 1\) e \(c_2\gt 1\), tais que \(f(c_1)=f(c_2)=0\)
(ii) Teorema de Rolle: não tem mais do que duas soluções:
Resposta: Consideramos a mesma função \(f\). É diferenciável em \(\mathbb{R}\) e \(f'(x)=e^x-3.\) Então \(f'(x)=0\) sse \(x=\ln 3\), portanto apenas uma solução. Pelo Corolário 2, \(f\) tem no máximo duas soluções (uma \(\lt\ln 3\) e outra \(\gt \ln3\)).

O Teorema de Lagrange

É o teorema 3.8.32 da página 77 de [AB]. Considerando sempre \(a,b\) dois números reais tais que \(a\lt b\):

Teorema de Lagrange. Seja \(f\) uma função contínua em \(\left[a,b\right]\) e diferenciável em \(\left]a,b\right[\).
Então existe \(c\in\left]a,b\right[\) tal que, \[f'(c)=\frac{f(b)-f(a)}{b-a}\,.\]

Veja a demonstração em [AB]. A demonstração é um exercício que se sugere que façam e que confiram depois com a demonstração naquela referência: basta aplicar o Teorema de Rolle, não à função \(f(x)\) mas sim à função \[g(x)=f(x)-mx\,, \quad\text{com a constante}\quad m=\dfrac{f(b)-f(a)}{b-a}.\] Repare que o ponto \(c\) que o Teorema de Rolle garante, satisfaz a conclusão do Teorema de Lgrange. Esta demonstração é muito instrutiva e, ela própria, indica uma interpretação do Teorema de Lagrange: o que se está a fazer é subtrair uma recta de forma a que a recta secante ao gráfico que passava nos pontos \((a,f(a))\) e \((b,f(b))\) fique horizontal para a função \(g(x)\). Grosso modo, o Teorema de Lagrange é a "forma oblíqua" do Teorema de Rolle.

Interpretação geométrica: Nas condições do teorema de Lagrange, existe um ponto no interior do intervalo em que o declive da recta tangente ao gráfico nesse ponto é igual ao declive da recta secante que passa pelos pontos extremos do gráfico \((a,f(a))\), \((b,f(b))\) .

É também sugestiva a seguinte interpretação física: se \(x\) fôr o tempo decorrido e \(f(x)\) o espaço percorrido por um corpo até ao instante \(x\), então haverá pelo menos um instante em que a velocidade instantânea iguala a velocidade média em todo o percurso.

A importância deste teorema fica bem visível com as suas consequências seguintes (corolários 3.8.34, 3.8.35 e 3.8.36 de [AB]):

Corolário 3. Se \(f\) é uma função diferenciável num intervalo I e, para todo \(x\in I\), \(f'(x)=0\), então \(f\) é uma função constante nesse intervalo.

Corolário 4. Se \(f,g\) são duas funções diferenciáveis num intervalo \(I\) e, para todo o \(x\in I\), \(f'(x)=g'(x)\) então \(f-g\) é constante nesse intervalo.

Corolário 5. Seja \(f\) uma função contínua em \(\left[a,b\right]\) e diferenciável em \(\left]a,b\right[\).
  Se para todo o \(x\in\left]a,b\right[\), \(f'(x)\gt 0\), então \(f\) é estritamente crescente em \(\left[a,b\right]\).
  Se para todo o \(x\in\left]a,b\right[\), \(f'(x)\lt 0\), então \(f\) é estritamente decrescente em \(\left[a,b\right]\).

O corolário 3 obtem-se aplicando o Teorema de Lagrange a qualquer intervalo fechado \([x_1,x_2]\) contido em \(I\). Repare que estamos nas condições de aplicação do Teorema de Lagrange. Como a condição \(f'(x)=0\) em todos os pontos de \(I\), implica que, para aquele intervalo se tenha \(m=0\), concluimos que \(f(x_1)=f(x_2)\). Logo, \(f\) é constante em \(I\).

O corolário 4 obtem-se do primeiro aplicando-o à função \(h(x)=f(x)-g(x)\) (Exercício).

O corolário 5 obtem-se aplicando o Teorema de Lagrange a qualquer intervalo \([x_1,x_2]\) contido em \([a,b]\). Com a condição \(f(x)\gt 0\) para todo \(x\in]a,b[\), obtem-se \(m\gt 0\) e, portanto, \(f(x_2)\gt f(x_1)\). Para o outro caso é semelhante.

Os dois primeiro corolários são fundamentais no estudo de funções e veremos mais adiante a sua importância no Cálculo Integral. O terceiro é a justificação matemática da ideia que os alunos já têm de que derivada positiva implica função estritamente crescente enquanto que derivada negativa implica função estritamente decrescente. Este resultado só pode ser obtido com a aplicação do teorema de Lagrange. A ideia geométrica com base na interpretação do declive da recta tangente serve para termos alguma intuição sobre o assunto mas não para justificar a afirmação.

NOTAS:

1. No corolário 3, se o domínio não for um intervalo, então o resultado pode falhar. Por exemplo, \[f(x)=\frac{|x|}{x}\,,\qquad D_f=\mathbb{R}\setminus\{0\}.\] Então, \(f'(x)=0\), para todo \(x\in D_f\) e, no entanto, \(f\) não é constante em \(D_f\).

2. A mesma observação para o corolário 4. O mesmo exemplo serve, porque, se considerarmos a função constante \(g(x)=0\) em \(\mathbb{R}\), temos \(f'(x)=g'(x)=0\), para todo \(x\in D_f\), e, no entanto, \(f-g=f\), logo, não é uma função constante.

3. Para o corolário 5 é válida uma observação semelhante: Se \(D_f\) não é um intervalo, o corolário 5 pode falhar. Um exemplo: \[f(x)=\frac{1}{x},\qquad D_f=\mathbb{R}\setminus \{0\}.\]

Neste caso, \(f'(x)=-\dfrac{1}{x^2}\lt 0\), para todo \(x\in D_f\), e no entanto não é decrescente. Basta, por exemplo, ver que \(f(1)\gt f(-1)\). No entanto, é estritamente decrescente em cada um dos intervalos \(\left]-\infty,0\right[\) e \(\left]0,+\infty\right[\).

4. No corolário 5, nas condições indicadas, temos as implicações num só sentido:

  • \(f'\gt 0\;\) em \(\;]a,b[\quad\Rightarrow \quad f\) é estritamente crescente em \(\left]a,b\right[\).
  • \(f'\lt 0\;\) em \(\;]a,b[\quad\Rightarrow \quad f\) é estritamente decrescente em \(\left]a,b\right[\).
  • A implicação recíproca \(\Leftarrow\) é falsa em geral. Veja, por exemplo, \(f(x)=x^3\). É estritamente crescente em \(\mathbb{R}\), mas \(f'(0)=0.\) No entanto, nas condições dos corolários as seguintes implicações são válidas:

  • \(f\) é crescente (estritamente ou não) em \([a,b]\quad\Rightarrow\quad f'\geqslant 0\;\) em \(\;\left]a,b\right[\).
  • \(f\) é decrescente (estritamente ou não) em \([a,b]\quad\Rightarrow\quad f'\leqslant 0\;\) em \(\;\left]a,b\right[\).
  • Estas afirmações resultam da aplicação directa da própria definição de derivada e não de algum teorema fundamental. Exercício: obtenha-as, começando por estudar o sinal da razão incremental \(\displaystyle\frac{f(x)-f(a)}{x-a}\), em cada um dos dois casos.

    Intervalos de monotonia e extremos

    O corolário 5 (3.8.36 em [AB]), permite-nos, estudando o sinal da derivada, identificar intervalos contidos no domínio da função onde a função é estritamente monótona. Estes intervalos designam-se por intervalos de monotonia. A identificação destes intervalos e dos extremos relativos e absolutosé uma parte fundamental do estudo de uma função. Nas próximas aulas veremos outra ferramenta para averiguar se \(f\) tem ou não um extremo relativo num ponto específico, recorrendo à segunda derivada ou mesmo derivadas de ordem superior. No entanto, se os intervalos de monotonia já tiverem sido identificados, e se a função for contínua nesse ponto, é possível decidir se é ponto de máximo, de mínimo ou se não é extremo, sem usar a segunda derivada, recorrendo à seguinte consequência do corolário 5,

    Corolário 6 Seja \(f\) contínua num intervalo \(I\) e \(a\) um ponto interior a \(I\).
     Se \(f'\lt 0\) em \(]a-\varepsilon, a[\) e \(f'\gt 0\) em \(]a, a+\varepsilon[\), então \(f\) tem mínimo relativo em \(a\).
     Se \(f'\gt 0\) em \(]a-\varepsilon, a[\) e \(f'\lt 0\) em \(]a, a+\varepsilon[\), então \(f\) tem máximo relativo em \(a\).

    Repare que este resultado não requer que \(f\) seja diferenciável no ponto \(a\). Um exemplo disto é a função \(f(x)=|x|\). Temos \(f'(x)=-1\lt 0\) se \(x\lt 0\), e \(f'(x)=1>0\) se \(x>0\). Como \(f\) é contínua em \(\mathbb{R}\), podemos, de acordo com este resultado, concluir que \(f\) tem um mínimo relativo em \(a=0\) (obviamente é também absoluto).

    No entanto, é importante que \(f\) seja contínua em \(a\). Veja o seguinte exemplo: \[f(x)=\begin{cases} -x &\text{se }\; x\lt 0\,,\\ x+1&\text{se }\; x\geqslant 0\,. \end{cases}\]

    Temos, \(\;f'(x)=\begin{cases} -1 &\text{se }\; x\lt 0\,,\\ 1&\text{se }\; x\gt 0\,,\quad \end{cases}\) não sendo \(f\) diferenciável no ponto \(0\). Como \(f(0)=1\gt f(0^-)=0\), concluimos que \(f\) não tem mínimo relativo em \(0\). Neste caso, a conclusão do corolário 6, não é aplicável porque \(f\) não é contínua em \(a=0\).

    Exemplos

    Exemplo 4. \(f(x)=x^4-8x^2=x^2(x^2-8)\,,\quad D_f=\mathbb{R}\).
      Mínimo relativo e absoluto em \(x=2\) e \(x=-2\), \(f(2)=f(-2)=-16\); máximo relativo, não absoluto, em \(x=0\), \(f(0)=0\). Contradomínio: \(C_f=[-16,+\infty[\).

    Exemplo 5. \(f(x)=e^{|x|}\,,\quad D_f=\mathbb{R}\).
      Mínimo relativo e absoluto em \(x=0\), \(f(0)=1\) (\(f\) contínua, não diferenciável em \(0\), usou-se o corolário 6). Contradomínio: \(C_f=[1,+\infty[.\)

    Exemplo 6. \(f(x)=\begin{cases} \operatorname{arctg}\dfrac{1}{|x|} &\text{se }\; x\not= 0\,,\\ \dfrac{\pi}{2}&\text{se }\; x= 0\,, \end{cases}\quad D_f=\mathbb{R}\).
      Máximo relativo e absoluto em \(x=0\), \(f(0)=\dfrac{\pi}{2}\) (\(f\) contínua, não diferenciável em \(0\), corolário 6). Contradomínio: \(C_f=\left]0,\dfrac{\pi}{2}\right].\)

    Exemplo 7. \(f(x)=\dfrac{e^x}{x}\), \(\quad D_f=\mathbb{R}\setminus\{0\}\).
      Mínimo relativo, não absoluto em \(x=1,\) \(f(1)=e\). Contradomínio: \(\left]-\infty,0\right[\cup \left[e,+\infty\right[.\)