Aula teórica 16

Limites de uma função num ponto (conclusão) Funções definidas em intervalos: propriedades globais da continuidade.
O Teorema de Bolzano (ou do valor intermédio). Aplicações.
O Teorema de Weierstrass.
Teorema da continuidade da função inversa.

Material de estudo:

Observação importante: Retomamos aqui o estudo baseado no texto [AB].

Limite de uma função num ponto (conclusão).

Terminamos o estudo das propriedades locais da continuidade (aquelas que dizem respeito às propriedades na vizinhança de um ponto onde \(f\) é contínua) com o seguinte Teorema:

Teorema Se a função \(f\) é monótona em \(I=]a,b[\), e se \(c\in I\), então existem os limites laterais \(f(c^-)\) e \(f(c^+)\).

Este é o teorema 3.3.37 de [AB]. Pode ver aí a sua demonstração. Repare que há um paralelismo entre este teorema e o teorema das sucessões monótonas e limitadas. Ambos são consequências do axioma do supremo.

Funções contínuas em intervalos. Propriedades globais da continuidade

Estudamos nesta secção propriedades que são consequências da continuidade de uma função em todo um intervalo e, portanto, não basta a continuidade em torno de um ponto.

Os grandes teoremas desta secção são:

  • O Teorema de Bolzano (ou do valor intermédio)
  • O Teorema de Weierstrass
  • O Teorema da continuidade da função inversa
  • Estes resultados estão expostos no texto [AB], páginas 60-66, e qualquer um deles é muito importante. Para verem exercícos onde eles se aplicam, recomendo os exercícios resolvidos da lista [CG]. Haverá uma ficha das aulas de problemas onde problemas semelhantes serão trabalhados.

    Recomenda-se também a visualização das aulas em video do Prof. Miguel abtreu [MA]

    Sugestões para o estudo de [AB]:

    1 - Comece por ver o significado da expressão "\(f\) é contínua num conjunto \(A\)" na página 60.

    2 - Estude o Teorema de Bolzano ou do valor intermédio na página 61.

    Teorema de Bolzano (ou do valor intermédio). Seja

  • \(I=[a,b]\) um intervalo limitado e fechado,
  • \(f:I\to \mathbb{R},\) uma função contínua em \(I\),
  • \(f(a)\not=f(b).\)
  • Então, qualquer que seja \(k\) estritamente compreendido entre \(f(a)\) e \(f(b)\), existe \(c\in\left]a,b\right[\) tal que \[f(c)=k.\]

    Na demonstração usa-se um resultado que não foi dado. Veja aqui uma demonstração alternativa usando apenas resultados dados:

    É mais uma aplicação do Axioma do supremo.

    Vamos supôr, para simplificar ideias, que \(f(a)\lt f(b)\) (pode ver, como exercício, o caso \(f(a)\gt f(b)\)). Tome-se, de acordo com o enunciado, \(k\) tal que \(f(a)\lt k\lt f(b)\).

    Defina-se \(A\) como conjunto de todos os pontos \(x\in I\) tais que \[f(x)\lt k\,.\] Então,

  • \(A\not=\emptyset\): de facto, pela forma como \(k\) foi escolhido, \(a\in A\);
  • \(A\) é majorado: de facto, \(b\) é um majorante de \(A\).
  • Logo, pelo axioma do supremo, existe \[c=\sup A.\]

    Verifiquemos agora, que \(c\in\left]a,b\right[\) e que, \(f(c)=k.\)

    Por definição de supremo, existe uma sucessão \(x_n\in A\) tal que \(x_n\to c\). Mas \(f(x_n)\lt k\), por definição de \(A\), e logo, por continuidade, teremos \[k\gt f(x_n)\to f(c),\] donde concluimos \[f(c)\leqslant k.\] Isto exclui, em particular, a possibilidade \(c=b\), pelo que \(c\lt b\). Mas, por definição de \(A\) e do supremo, temos \[x\in\left]c,b\right[\quad\Rightarrow\quad x\notin A\quad \Rightarrow\quad f(x)\geqslant k\] donde concluimos que \[f(c^+)\geqslant k.\] Combinando os resultados anteriores e usando a continuidade em \(c\), \[k\leqslant f(c^+)=f(c)\leqslant k,\] pelo que, concluimos que \[f(c)=k,\] e, portanto \(c\not=a\), ou seja, \(c\in\left]a,b\right[\).

    3 - Estude as importantes consequências deste teorema incluindo os Corolários 3.4.43 e 3.4.44.

    O primeiro permite-nos concluir que,

  • se uma função contínua num intervalo \(I\) não se anula em \(I\), então tem sinal fixo em \(I\).
  • É esta propriedade que nos permite, por exemplo, construir tabelas de sinal.

    O segundo, diz que

  • uma função contínua entre dois pontos com sinais diferentes tem que ter um zero entre esses pontos.
  • É este resultado que vamos aplicar ao estudo de zeros de funções.

    Repare que são ambas consequências da continuidade global. Se houver, pelo menos, um ponto em \(I\) onde a função não seja contínua, ou se o domínio não é um intervalo, então, aqueles resultados são falsos em geral:

    Exemplo 1. \(f:[-1,1]\to \mathbb{R}\) dada por \(f(x)=-1\) se \(x\in\left]-1,0\right[\), e \(f(x)=1\) se \(x\in [0,1]\). Apesar de \(f(-1)\lt 0\lt f(1)\), não existe \(c\in\left]-1,1\right[\) tal que \(f(c)=0.\) Neste caso, o resultado referido anteriormente não é aplicável porque \(f\) não é contínua em \(I\).

    Exemplo 2. \(f:[-1,1]\setminus\{0\}\to \mathbb{R}\) dada por \(f(x)=\dfrac{1}{x}\), para cada \(x\in D_f\). Apesar de \(f(-1)\lt 0\lt f(1)\), não existe \(c\in D_f\) tal que \(f(c)=0.\) Neste caso, o resultado referido anteriormente não se verifica porque, apesar de \(f\) ser contínua (isto significa, contínua em \(D_f\)!), o domínio de \(f\) não é um intervalo.

    Ponto fixo de uma função: Veja com atenção o Exemplo 3.4.45 onde se introduz o conceito de ponto fixo de uma função \(f\) como sendo qualquer valor \(c\in D_f\) que satisfaz, \[f(c)=c.\] Estes pontos são investigados usando o Corolário 3.4.44 aplicado à função, \[g(x)=f(x)-x.\] Repare que os pontos fixos de \(f\) são exactamente os zeros de \(g\).

    Para mais ilustrações de aplicações do Teorema de Bolzano (ou dos seus corolários), apresentam-se os seguintes exemplos:

    Exemplo 3. A equação \(e^x+\sqrt{x}=\sqrt{2}\) tem, pelo menos, uma solução em \(\left]0,1\right[\). De facto, se \(f(x)=e^x+\sqrt{x}\), então \(f\) é contínua em \(I=[0,1]\), e além disso, \(f(0)=1\), \(f(1)=e+1\gt 2\) e, portanto, \[f(0)\lt\sqrt{2}\lt f(1).\] Logo, o Teorema de Bolzano permite-nos concluir o resultado.

    Exemplo 4. Seja \(f:\mathbb{R}\to \mathbb{R}\) dada por \(f(x)=e^x-2.\) Então, \(f\) tem dois pontos fixos em \(\mathbb{R}\). Ou seja, a equação \(f(x)=x\) tem duas soluções. De facto, sendo \(f\) contínua em \(\mathbb{R}\), o mesmo acontecerá com a função \(g(x)=f(x)-x.\;\) Além disso, \[g(0)=-1\lt 0\;,\qquad g(-2)=e^{-2}\gt 0\;,\qquad g(2)=e^2-4\gt 0\,\] e o Corolário 3.4.44 (ou o Teorema de Bolzano) permite-nos concluir que \(g\) tem, pelo menos, um zero em \(\left]-2,0\right[\) e, pelo menos, um zero em \(\left]0,2\right[\), ou seja, \(f\) tem, pelo menos, um ponto fixo em cada um destes intervalos.

    NOTA: Para já, não podemos dizer se o número de pontos fixos de \(f\) é exactamente 2. Para isso, teremos que estudar os intervalos de monotonia da função \(g\), o que será feito com base no estudo do sinal da derivada de \(g\).

    Exemplo 5. O polinómio \(x^7-x^4+3\) tem contradomínio \(\mathbb{R}\). De facto, seja \(f(x)=x^7-x^4+3,\;\) a qual é contínua em \(\mathbb{R}\). Então, \[\lim_{x\to -\infty}f(x)=-\infty\,,\qquad \lim_{x\to +\infty}f(x)=+\infty. \qquad \text{(Verifique!)}\] Logo, dado um real arbitrário \(k\), existe sempre um \(a\lt 0\), tal que \(f(a)\lt k,\;\) e um \(b\gt 0,\;\) tal que \(f(b)\gt k.\;\) O teorema de Bolzano permite-nos concluir que existe, pelo menos, um \(c\in\left]a,b\right[\) tal que \(f(c)=k\). Logo, \(k\in C_f\). Como \(k\) é um número real qualquer, concluimos que \(C_f=\mathbb{R}.\)

    NOTA: Este é um caso particular do seguinte resultado que se recomenda que demonstre, generalizando o raciocínio deste exemplo:

  • Qualquer polinómio de grau ímpar tem, pelo menos um zero.
  • Exemplo 6. Seja \(f:\mathbb{R}\to \mathbb{R}\) contínua, tal que \(\displaystyle\lim_{x\to -\infty}f(x)=0\;\) e \(\;\displaystyle\lim_{x\to +\infty}f(x)=2\). Então,

    (a)\(\quad\left]0,2\right[\subset C_f\). De facto, seja \(k\in\left]0,2\right[\). Seja \(\varepsilon>0\) tal que, \(\varepsilon\lt k\) e, simultaneamente \(\varepsilon\lt 2-k\). Então, pela definição de limite, existe \(a\lt 0\) tal que \(|f(a)-0|\lt \varepsilon\), e existe \(b\gt 0\) tal que \(|f(b)-2|\lt \varepsilon\), e portanto, \[f(a)\lt \varepsilon\lt k,\qquad\text{ e }\qquad f(b)>2-\varepsilon>k.\] Pelo Teorema de Bolzano, concluimos que existe \(c\in\left]a,b\right[\) tal que \(f(c)=k\). Logo, \(k\in C_f\). Como \(k\) é um ponto arbitrário de \(\left]0,2\right[\), concluimos que \(\left]0,2\right[\subset C_f\).

    (b) Com a hipótese adicional de \(f\) ser estritamente crescente podemos concluir que \(C_f=\left]0,2\right[\).

    Efectivamente, suponhamos, por absurdo, que existia \(k\leqslant 0\), tal que \(k\in C_f\), ou seja, tal que existia \(c\) para o qual \(f(c)=k.\) Fixe-se \(x_0\lt c\). Então, como \(f\) é estritamente crescente, teríamos \(f(x_0)\lt k\leqslant 0\). Seja \(\varepsilon=|f(x_0)|=-f(x_0)\). Então, para todo \(x\lt x_0\) teríamos \(|f(x)-0|\gt \varepsilon\) contradizendo \(\displaystyle\lim_{x\to -\infty}f(x)=0\;\). Concluimos que não existe \(k\) naquelas condições.
    De igual modo se pode provar que não existe \(k\geqslant 2\) tal que \(k\in C_f\) (Exercício).

    Este resultado é um caso particular da seguinte proposição cuja demonstração segue exactamente os mesmos passos:

    Proposição. Seja \(f\) uma função contínua no intervalo aberto \(\left]a,b\right[\subset\overline{\mathbb{R}},\;\) tal que existem \(f(a^+)\not=f(b^-)\) em \(\overline{\mathbb{R}}\). Então, \[\left]f(a^+),f(b^-)\right[\subset C_f\quad\text{ se }\quad f(a^+)\lt f(b^-),\qquad \text{ ou }\qquad \left]f(b^-),f(a^+)\right[\subset C_f\quad\text{ se }\quad f(a^+)\gt f(b^-).\] Se \(f\) é estritamente monótona, então a relação \(\subset\) é substituida por igualdade em ambos os casos.

    A seguinte proposição é uma outra consequência directa do Teorema de Bolzano. Aliás, pode ser vista como outra forma de enunciar aquele teorema:

    Proposição. Funções contínuas transformam intervalos em intervalos, ou seja, se o domínio é um intervalo \(I,\) também a sua imagem \(f(I)\) será um intervalo.

    4 - Estude o Teorema de Weierstrass (Teorema 3.4.47) de [AB]

    Volte ao início da secção 3.4 e veja o enunciado do Teorema 3.4.41. A conclusão deste teorema está contido no Teorema de Weierstrass que se enuncia de seguida, mas é necessária a sua prévia obtenção, já que é necessário para a demonstração daquele importante teorema.

    Depois de relembrar o conceito de máximo e mínimo de uma função (Definição 3.4.46), veja o enunciado do Teorema de Weierstrass (Teor. 3.4.47):

    Teorema de Weierstrass. Seja \(I\) um intervalo limitado e fechado, isto é, \(I=[a,b]\;\) com \(a\leqslant b\;\) finitos. Se \(f\) é contínua em \(I\) então \(f\) tem máximo e mínimo em \(I\).

    Repare que, uma vez tendo o Teorema 3.4.41, temos que \(f(I)\) é limitado. Logo, existem \(\inf f(I)\) e \(\sup f(I)\). Significa isto que, para completar a demonstração do teorema de Weierstrass só falta mostrar que ambos pertencem a \(f(I).\) A demonstração apresentada em [AB] deste facto, que é o mais habitual na literatura, usa o Teorema de Bolzano-Weierstrass que não foi dado neste semestre. No entanto, dá-se em baixo uma demonstração alternativa:

    Demonstração para o caso do máximo.
    Seja \(M=\sup f(I)\), o qual sabemos existir pela limitação de \(f(I)\) e pelo axioma do supremo. Admitamos, por absurdo, que \(M\) não é máximo. Isto é equivalente a dizer que \(f(x)\not=M\), para todo \(x\in [a,b]\). Nesse caso, a função \[g(x)=\frac{1}{M-f(x)}\] é uma função contínua e estritamente positiva em \([a,b].\) Logo, é majorada em \([a,b]\) (Teor. 3.4.41, novamente). Ou seja, existe \(K>0\) tal que, para todo \(x\in[a,b]\) \[g(x)\lt K\quad\Longleftrightarrow\quad \frac{1}{M-f(x)}\lt K\quad\Longleftrightarrow\quad f(x)\lt M-\frac{1}{K}.\] Mas isto é impossível, porque nesse caso \(M\) não seria o menor dos majorantes de \(f(I)\) o que iria contradizer a definição de supremo. Ora, esta contradicção surgiu por admitirmos que \(M\) não era máximo de \(f(I)\). Conclusão: \(M=\max f(I).\)

    Sugere-se que faça a demonstração para a existência de mínimo usando o mesmo argumento com a devida adaptação.

    5 - Estude os importantes exemplos e observações relativas ao Teorema de Weierstrass 3.4.48-3.4.54

    Repare que o Teorema 3.4.51 não é mais do que a combinação do teorema de Weierstrass com o facto, já visto atrás, que funções contínuas transformam intervalos em intervalos.

    6 - Estude o Teorema da continuidade da função inversa e dedução da continuidade das inversas de funções elementares.

    Sintetizo aqui os resultados que nos levam à dedução do teorema da função inversa (Teorema 3.5.60 de [AB]):

    Hipóteses: \(f(x)\) é contínua e estritamente monótona no intervalo \(I\).

  • \(f\) é injectiva em \(I\) e, portanto admite função inversa \(f^{-1}\) com domínio \(J=C_f\) e contradomínio \(I=D_f\)
  • Por hipótese, \(I\) é um intervalo e, como também por hipótese, \(f\) é contínua deduzimos que \(J\) é também um intervalo.
  • Ou seja, \(f^{-1}\) é uma função monótona no intervalo \(J\) e \(f^{-1}(J)=I\) que é também um intervalo.
  • O Teorema da continuidade da função inversa resulta da afirmação anterior e do Teorema 3.4.55 que diz:

    Teorema. Qualquer função \(g\) monótona num intervalo \(K\) tal que \(g(K)\) é também um intervalo, é contínua em \(K\).

  • e teremos assim:

    Teorema da continuidade da função inversa. Seja \(f\) uma função estritamente monótona e contínua num intervalo \(I\). Então, existe a função inversa \(f^{-1}\) definida em \(J=f(I)\) e é contínua em \(J\).

    Aplicações importantes

  • Função logaritmo. É a inversa da função exponencial \(E(x)=e^x\), com \(D_E=\mathbb{R}\) e \(C_E=\mathbb{R}^+\): \[y=\ln x \quad\Leftrightarrow\quad x=e^y.\] Assim, pelo Teorema da continuidade da função inversa, \(\ln x\) é contínua no seu domínio \(D_{\ln}=C_E=\mathbb{R}^+\).
  • Trigonométricas inversas. Da continuidade e monotonia estrita, respectivamente nos intervalos \([-\pi/2,\pi/2]\) e \([0,\pi]\), das funções \(\operatorname{sen} x\) e \(\cos x\), deduzimos a continuidade das funções \(\operatorname{arcsen}x\) e \(\arccos x\) nos seus domínios, que são ambos o intervalo \([-1,1]\). Rever o guia de estudo da aula teórica 12.